Folha de S. Paulo


Snapchat aposta na supremacia cultural da câmera em longo prazo

Snap Inc./AFP Photo
Spectacles, do Snapchat
Spectacles, do Snapchat

Se você está monitorando a cotação das ações da Snap, pare. A empresa que controla o Snapchat, um popular aplicativo de mensagens fotográficas, vem passando por alguns dias de instabilidade depois de uma oferta pública inicial astronômica na semana passada.

Mas o sucesso ou fracasso da Snap não será determinado nesta semana, ou mesmo neste ano. Trata-se de uma companhia que está apostando em uma tendência de longo prazo: a ascensão e futuro domínio da cultura visual.

A Snap se define como companhia de câmeras. Eles parecem estar sendo engraçadinhos, se considerarmos que só lançaram uma câmera, integrada ao óculos de sol Spectacles, no final do ano passado. A Snap provavelmente criará outros tipo de câmeras, entre as quais possivelmente uma instalada em aeronave de controle remoto (drone).

Mas é melhor levar a sério, ainda que não literalmente, o que a Snap diz sobre câmeras. A Snap não está afirmando que seu negócio primário será a venda de câmeras como hardware. Ela não vai se transformar na Nikon, Polaroid ou GoPro. Em lugar disso, a empresa descobriu algo de mais profundo e importante. Por meio de seu hardware e software, a Snap quer facilitar a supremacia cultural das câmeras, e torná-las pelo menos tão importantes quanto os teclados em nossas vidas cotidianas.

Desde antes da invenção da impressora de tipos móveis, o texto vem sendo a forma central de comunicação entre os seres humanos, ao longo do tempo e não importa a distância. Os computadores só firmaram a primazia do texto. A ascensão da editoração eletrônica, nos anos 80, fez de todos nós criadores de belos documentos impressos.

Em seguida, a internet nos tornou distribuidores de palavras digitais. Subitamente, nos tornamos todos blogueiros, usuários do e-mail, Twitter, Medium e das atualizações de status na mídia social. Trocamos os telefonemas por mensagens escritas. Demos a essas mensagens o nome do que elas são: textos, o mesmo termo que estudiosos aplicam a documentos da antiguidade.

Mas então surgiu o celular equipado com câmera e, em seguida, uma década atrás, o smartphone. Pela primeira vez, se tornou possível para os seres humanos documentar instantaneamente o espaço que os cerca e transmitir essas imagens com completa fidelidade.

No começo, a mudança parecia pequena: todos passamos a ter mais fotos de nossas famílias. Muitas empresas, do Facebook ao Flickr e Instagram, prosperaram com essa ideia.

Mas o Snapchat descobriu algo de mais profundo sobre a câmera. Podemos usar imagens não só para documentar o mundo como também para nos comunicarmos. O Snapchat, inicialmente descartado como um simples app para mensagens de sexo, demonstrou que, com o design certo, a câmera de um celular podia acrescentar uma nova dimensão à comunicação, superior ao que tínhamos apenas com textos.

E esse pode ser só o começo. A crescente importância das câmeras —das imagens em lugar de apenas texto— está mudando muita coisa em nossa cultura. Está transformando as relações culturais de muitas pessoas. Está mudando a arte e o entretenimento que produzimos. Pode-se até creditar as câmeras— ou culpá-las— pela política mais emocional e menos racional de nossos dias.

MANDA SNAP

Talvez mais importante, a crescente dependência quanto às câmeras está mudando nossa linguagem. Excetuada a comunicação face a face, nós costumávamos conversar primordialmente com palavras. Agora, mais mais e mais, dos GIFs aos emojis, dos selfies aos memes de imagens e vídeos ao vivo, conversaremos via imagem.

Como isso muda a cultura? Em estudo publicado no ano passado, Oren Soffer, professor de comunicação na Universidade Aberta de Israel, argumentou que o Snapchat nos devolve à era anterior a Gutenberg, quando a informação era disseminada por via oral e não por escrito.

O Snapchat tem dois traços que o definem: imagens e efemeridade. Quando você conversa com alguém no app, em geral envia uma foto, muitas vezes de seu rosto. A foto dura alguns segundos e desaparece. Paradoxalmente, essas características tornam o Snapchat mais parecido com uma conversa real, se comparado à escrita.

"O que o Snapchat está tentando é aplicar a tecnologia a produtos visuais a fim de criar um efeito de desaparecimento —da mesma forma que as palavras desaparecem depois de pronunciadas", ele escreveu.

O Snapchat acrescenta outros recursos para aprofundar esse efeito. As lentes e filtros —que permitem que o rosto do usuário fique parecido com o de um cachorro, por exemplo— parecem pueris para pessoas que não estão acostumadas ao app. Mas assim que você começa a usar o Snapchat, passa a compreender o efeito: as lentes não são apenas uma brincadeira fantasiosa, mas podem executar outras funções próximas a uma conversa face a face, além disso. Elas podem ocultar o rosto do usuário se ele não estiver bonito. E podem oferecer pistas emocionais: vomitar um arco-íris pode significar que o usuário está se sentindo ótimo, e um filtro branco e preto pode sugerir melancolia.

Sim, o Snapchat permite que você acrescente texto a essas imagens, mas elas são uma linguagem em si. Gretchen McCulloch, linguista que está escrevendo um livro sobre a maneira pela qual a internet está mudando a linguagem, disse que as lentes e filtros do Snapchat são uma forma do que os linguistas chamam de "comunicação fática", ou seja, comunicação cujo objetivo é facilitar interações sociais, e não transmitir informações. (Por exemplo, dizer "alô" e "de nada".)

Zanone Fraissat/Folhapress
Mãe e filha se comunicam por Snapchat
Mãe e filha se comunicam por Snapchat

"Esse é o propósito dos filtros de rosto e geofiltros do Snapchat —eles oferecem uma maneira divertida de comunicar com imagem essa forma de mensagem fática", diz McCulloch.

O outro propósito servido pelos filtros é o de criar um contexto compartilhado para comunicação. Quando você conversa com pessoas na vida real, frequentemente o faz em meio a outras atividades —em um jantar, durante uma caminhada, ou jogando alguma coisa.

"Nos ambientes digitais, o contexto sobre o qual você fala são os filtros do Snapchat, ou coleções de stickers, ou um GIF interessante", disse McCulloch. "São objetos compartilhados sobre os quais falar".

Nada disso sugere que a escrita desaparecerá. Na internet, as novas formas de comunicação tendem a viciar. Não substituiremos os textos por imagens; os dois serão usados juntos para criar algo novo. Além disso, o texto continua insubstituível para muitas formas de comunicação. Eu poderia ter tentado lhes contar essa história na forma de uma história baseada em imagens, via Snapchat, mas o resultado provavelmente teria sido desordenado e não especialmente informativo. Se você deseja transmitir muita informação de forma concisa e precisa, escrever continua a ser um dos melhores métodos disponíveis.

"Se você já viu as instruções de montagem dos móveis da Ikea, elas não contém texto, e são conhecidas pelas frustrações que causam a quem tente usá-las", disse McCulloch. "As instruções da Ikea funcionariam muito melhor se contivessem texto. Por isso não acho que as palavras desaparecerão".

Mas mesmo que as palavras não venham a ser substituídas por imagens, a crescente importância dos sistemas de comunicação baseados em imagens ainda poderá alterar fortemente a sociedade. Joe Weisenthal, da Bloomberg, argumentou, no ano passado, que a tumultuada campanha presidencial de 2016, nos Estados Unidos, derivava em parte do que ele designou como "nossa era pós-letrada".

Na era da comunicação oral, na antiguidade, as mensagens que se provavam mais memoráveis eram curtas e ressoavam emocionalmente. Weisenthal argumentou que a sintaxe entrecortada e repleta de imagens das mídias sociais portava alguma semelhança com aquele paradigma.

"Pensamentos complicados, nuançados, que requeiram contexto, não funcionam muito bem na maioria das plataformas sociais, mas um hashtag ruidoso pode ganhar influência extraordinária", ele afirmou.

E você sabe o que funciona ainda melhor que um hashtag? Um GIF.

Nenhuma empresa está facilitando a, ou se beneficiando mais da, ascensão da comunicação visual que a Snap. Sua estratégia não garante sucesso; há muitas outras empresas tentando aproveitar a mesma megatendência, entre as quais YouTube e Instagram, dois serviços que contam com audiências imensas e sempre crescentes e estabeleceram fortes relacionamentos com os anunciantes.

Mas a Snap é única entre as companhias de mídia social por apostar tudo na imagem. E em um mundo no qual a imagem está se tornando tudo, não é uma má aposta.

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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