Folha de S. Paulo


Crítica

Sociólogo prevê morte trágica do capitalismo em livro

Spencer Platt/AFP
Manifestação em frente a estátua do touro de Wall Street, símbolo financeiro de Nova York (EUA).
Manifestação em frente a estátua do touro de Wall Street, símbolo financeiro de Nova York (EUA).

É chegada a hora, e com ela o clichê. No caso de Wolfgang Streeck, influente sociólogo alemão e diretor emérito do Instituto Max Planck em Colônia, esse clichê é o "fim do capitalismo".

Incontáveis intelectuais, entre os quais Karl Marx, previram o fim, iminente ou pelo menos inevitável, do capitalismo. O capitalismo sempre sobreviveu.

Desta vez, argumenta Streeck, é diferente. O capitalismo "pelo futuro previsível existirá no limbo, morto ou à beira da morte por overdose de si mesmo, mas ainda presente, já que ninguém tem o poder de remover do caminho o seu cadáver em decomposição".

"How Will Capitalism End" [Como o capitalismo vai acabar?], uma coleção de ensaios que em alguma medida se sobrepõem, concebe uma "sociedade desprovida de instituições coerentes e minimamente estáveis capazes de normalizar as vidas de seus membros e protegê-los contra acidentes e monstruosidades de toda espécie",.

Isso oferecerá "ricas oportunidades a oligarcas e líderes de facções armadas, e imporá incerteza e insegurança a todos os demais, de maneira em alguma medida semelhante ao longo interregno iniciado no século 5 DC e hoje conhecido como "Idade das Trevas".

Streeck é uma mistura de analista, moralista e profeta. Como analista, ele contesta a estabilidade do capitalismo democrático. Como moralista, ele desaprova uma sociedade cuja fundação seja a cobiça. Como profeta, ele declara que a consequência desse pecado é a morte.

Streeck não acredita na chegada inevitável de um paraíso socialista. Pelo contrário: oferece uma visão distópica na qual o capitalismo perece não com uma explosão, mas com um murmúrio. Já que o capitalismo não consegue mais transformar vícios privados em benefícios públicos, ele argumenta, sua "existência como ordem social autorreprodutiva, sustentável, previsível e legítima" se encerrou. O capitalismo se tornou "tão capitalista que está fazendo mal a si mesmo".

O casamento entre a democracia de sufrágio universal e o capitalismo, que surgiu no pós-guerra, está terminando em divórcio, argumenta Streeck.

O caminho que nos conduziu a esse ponto passou por estágios sucessivos: a inflação mundial dos anos 70; a explosão da dívida pública nos anos 80, a alta na dívida privada nos anos 90 e começo dos anos 2000; e as subsequentes crises financeiras cujo legado inclui taxas de juros ultrabaixas, aumento gigantesco no endividamento público e crescimento decepcionante.
Acompanhando o capitalismo nessa estrada para a ruína veio uma "crise fiscal progressivamente mais grave para o Estado democrático-capitalista". O "Estado tributário" que existia anteriormente se tornou o "Estado devedor", e agora o "Estado de consolidação" (ou "Estado de austeridade"), dedicado a reduzir deficit por meio de cortes de gastos.

Três tendências subjacentes contribuíram para o processo: o declínio no crescimento econômico; a crescente desigualdade; e a disparada no endividamento. Elas se reforçam mutuamente, segundo Streeck: o baixo crescimento engendra disputas de distribuição, e a solução em muitos casos envolve captação excessiva.

As visões dele sobre o absurdo do relaxamento quantitativo como paliativo espelham as dos economistas da escola austríaca, que ele despreza. Esse não é o único ponto em que Streeck ecoa visões direitistas: sua discussão sobre a crescente participação feminina no mercado de trabalho, por exemplo, encontra muito a lastimar e nada a celebrar nessa tendência.

Em uma de suas poucas frases marcantes, ele descreve a resposta das pessoas comuns à pressão que sofrem como "suportar, esperar, chapar e comprar". Mas, acima de tudo, Streeck enfatiza as terríveis consequências de um sistema financeiro fora de controle, uma plutocracia predatória que sonega e contorna impostos, a transferência de boa parte da esfera pública para mãos privadas e a resultante corrupção nos domínios político e econômico.

EUROPA

Streeck também escreve de modo devastador e bem informado sobre o euro como uma forma de ataque à política democrática. "A Alemanha", ele argumenta, "por conta do poder econômico que reconquistou depois de 2008 e como principal beneficiária da união monetária e econômica devido à força de suas exportações... na prática governa a união monetária e econômica como se fosse um império econômico alemão".

A zona do euro, aponta Streeck, busca unir países com culturas econômicas irreconciliavelmente diferentes. Uma solução legitimamente democrática das tensões resultantes é impossível. O euro ou fracassará ou sobreviverá como uma estrutura não democrática subserviente aos caprichos dos mercados financeiros e gerida por um banco central tecnocrático e uma Alemanha hegemônica.

As visões de Streeck sobre a insensatez do euro são convincentes, mas sua previsão de que a Europa atual terminará em algo parecido com a Idade Média parece ridícula. Os europeus contemporâneos desfrutam de padrões de vida, expectativas de vida, liberdades pessoais e níveis de segurança que as pessoas da Idade Média, ou aliás do Império Romano, não seriam nem capazes de imaginar.

Além disso, apesar do que diz Streeck, o mundo atual não consiste apenas de fracassos. Ele aponta, com razão, que o surgimento de uma economia de mercado globalizada reduziu a efetividade do compromisso entre a democracia e o capitalismo nacional surgido na metade do século 20. Mas seu entusiasmo por desglobalizar o capitalismo desconsidera completamente as imensas oportunidades que o comércio internacional ampliado e o investimento estrangeiro direto trouxeram, especialmente para a China e Índia.

Além disso, embora as tendências e os desgastes no funcionamento da economia de mercado contemporânea e em sua relação com a política democrática sejam parte da história, não são a história toda. Streeck está certo ao afirmar que não existe equilíbrio estável em qualquer sociedade. A economia e a comunidade precisam se adaptar e mudar.

No entanto, a relação entre a democracia e o capitalismo não é antinatural, ao contrário do que Streeck parece acreditar. Pelo contrário: os dois sistemas derivam de uma crença no papel das pessoas como cidadãos e agentes econômicos ativos. No primeiro papel, eles tomam decisões coletivas; no segundo, tomam decisões individuais. Os limites e os modos de operação de ambos os sistemas estão abertos a constante renegociação. Mas ambos são essenciais.

A democracia não pode funcionar sem uma economia de mercado. A alternativa - uma economia completamente politizada - não tem como funcionar devidamente: veja a Venezuela atual. O mercado protege a democracia contra uma distensão excessiva, e a democracia oferece uma estrutura legítima para o mercado. Da mesma forma que a economia de mercado é a forma menos ruim de gerar prosperidade, a democracia é a forma menos ruim de administrar conflitos sociais.

AMEAÇA

No mundo atual não é o capitalismo que está em perigo iminente, mas sim a democracia. Uma forma predatória de capitalismo pós-democrático, e não o fim do capitalismo, representa a verdadeira ameaça. Da mesma forma, o autoritarismo parece representar perigo muito mais grave que a anarquia de uma era de trevas.

Os desafios que enfrentamos para colocar as finanças sob controle, reequilibrar a governança empresarial, remediar a desigualdade, sustentar a demanda e, acima de tudo, administrar as tensões entre o Estado-Nação democrático e a economia de mercado globalizada são genuínos. As respostas deveriam incluir uma dose modesta de desglobalização, especialmente nas finanças, e uma maior cooperação entre os governos democráticos, especialmente quanto à tributação e a provisão de bens públicos globais. Isso será difícil? Sim. As respostas funcionarão para sempre? Não.

A tarefa é realizável? Absolutamente sim. Streeck condena essa "visão de mundo tecnocrata-voluntarista de que tudo é possível" como absurdamente ingênua. Esse derrotismo diante de forças sociais supostamente indomáveis é característico de certo tipo de intelectual. Mas a "visão de mundo de que tudo é possível" salvou a civilização na metade do século 20. Pode (e deve) fazê-lo de novo, mesmo que suas velhas bases institucionais, especialmente os sindicatos e partidos políticos, tenham enfraquecido.

"How Will Capitalism End?" oferece menos uma previsão convincente do que um alerta. Sua análise é exagerada e simplista. Streeck identifica corretamente algumas tendências perturbadoras. Mesmo assim, a história do século 20 demonstra que não precisamos ser vítimas de forças além de nosso controle. Podemos escolher entre o melhor e o pior. Deveríamos escolher o melhor.

Tradução de PAULO MIGLIACCI

How Will Capitalism end?
AUTOR Wolfgang Streeck
EDITORA Verso
QUANTO R$ 50,90 na Amazon (e-book; 272 págs.)


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