Folha de S. Paulo


Livro revê conquista do mundo pelo neoliberalismo nos anos 80

Gerald Penny/Associated Press
A então primeira ministra do Reino Unido, Margaret Thatcher, em imagem de 1980
A então primeira ministra do Reino Unido, Margaret Thatcher, em imagem de 1980

"A Economia é o método. O objetivo é mudar o coração e a alma". Assim terminou uma famosa entrevista com Margareth Thatcher, protagonista central da "grande virada" neoliberal dos anos 1980 ao lado do presidente americano Ronald Reagan.

O entrevistador a pressionava por conta da enorme crise de desemprego que sua política econômica gerava (que chamaríamos hoje de neoliberal) dois anos depois de conquistar o poder no Reino Unido.

Essa talvez seja a melhor maneira de encapsular, em duas curtas frases, a tese central dos professores franceses Pierre Dardot e Christian Laval em seu denso livro A Nova Razão do Mundo. Ensaio Sobre a Sociedade Neoliberal.

Segundo eles, e inspirados pela obra de Michel Foucault (O Nascimento da Biopolítica) enxergar o neoliberalismo como uma mera ideologia econômica, imposta pela força e de forma conspiratória pelos que dela se beneficiam é equivocado e contra-producente. Impede-nos não apenas de entendê-lo como também de formular uma resposta viável ao mesmo (para aqueles, é claro, que buscam esta resposta, como é o caso do que os autores chamam de "as esquerdas", ao mesmo tempo audiência e alvo crítico principais do livro).

O grande trunfo do neoliberalismo, e que explica seu persistente sucesso apesar das recorrentes crises que a economia das sociedades capitalistas que o seguem periodicamente enfrentam, foi ter logrado se introjetar em todas as relações sociais ao penetrar no coração e na alma das pessoas, criando o que os autores chamam de "sujeito neoliberal".

O sujeito neoliberal, ou "neosujeito", enxerga-se e organiza sua vida em todas as esferas sociais (família, trabalho, política) à luz da racionalidade neoliberal, isto é, como se fosse uma empresa ("a empresa de si mesmo").

É um verdadeiro produto de si mesmo que concorre a todo o tempo com os outros indivíduos e, portanto, precisa sempre desempenhar melhor para vencer o concorrente. Seus julgamentos são pautados pelo valor empresarial da eficiência, pelo cálculo da relação de custo-benefício, sempre em função de seu interesse pessoal, e não do interesse da comunidade em que vive. Até mesmo o voto, tradicionalmente expressão de uma virtude cívica, transforma-se em investimento em busca de um "retorno" individual.
Não há necessidade, desse modo, de imposição forçada do neoliberalismo. Os indivíduos se auto-policiam.

ÉTICA

Essa visão um tanto totalizante e unidimensional do "neosujeito" como o "sujeito-empresa" soa em princípio exagerada e artificial. Mas o argumento de Dardot e Laval não parece ser o de que todas as pessoas são assim, e o tempo todo assim, mas simplesmente que essa é a tônica dominante, o "ethos", de nossa era neoliberal, o que me parece plausível.

O desafio é explicar o porque da adesão e fidelidade das pessoas à racionalidade neoliberal ao mesmo tempo em que enxergam as consequências maléficas a que leva, sobretudo nos momentos de crise econômica como o atual.

Aqui esteja talvez o ponto mais interessante e original da análise dos autores. Ao contrário de grande parte da crítica, que atribuem tal aceitação, e suas manifestações patológicas ( o "individualismo hedonista"; o "narcisismo de massa") à manipulação conspiratória dos poderosos com auxilio da "injunção publicitária ao gozo", Dardot e Laval chamam atenção também para a fundamentação moral (para muitos convincente) da racionalidade neoliberal, qual seja, a ética da responsabilidade individual. A competição exacerbada e seus resultados, potencialmente devastadores ao perdedor no ambiente neoliberal, encorajariam o esforço, o progresso e a prudência individuais, sendo ao mesmo tempo benéfica à sociedade e justa ao indivíduo, que é livre mas também responsável tanto pelos ganhos como pelas perdas resultantes de sua conduta.

Para os autores, a essência do neoliberalismo não está, portanto, na defesa intransigente e conspiratória do livre mercado, isto é, da não interferência do Estado no âmbito econômico pelo poderio econômico (um equívoco comum daqueles que o enxergam como mera extensão do liberalismo clássico), mas sim na construção, com a participação ativa do Estado e das pessoas, de um ambiente de competição e concorrência exacerbadas que abarca todas as esferas da existência humana.

É isso, para os autores, o que fez da razão neoliberal uma verdadeira "razão-mundo", explicando o título do livro.

Seria portanto fútil, segundo os autores, tentar vencer o neoliberalismo com a mera demonstração do evidente fracasso das políticas econômicas nele inspiradas e apregoando a volta das políticas do Estado de Bem Estar Social do pós-guerra (e aqui está outra crítica deles à esquerda). O que é preciso é fomentar uma racionalidade alternativa, fundada na cooperação e na solidariedade, para substituir a racionalidade neoliberal fundada no individualismo e na competição exacerbados.

Aqui está, talvez não surpreendentemente, o aspecto menos desenvolvido do livro. Não fica claro nem como a racionalidade neoliberal se formou, nem como pode ser revertida.

A julgar pela análise de outro importante livro a sair da França nos últimos anos, O Capital no Século XXI, de Thomas Piketty, não há razão para muito otimismo, pois o que gerou a onda de solidariedade que impulsionou as políticas dos "trinta anos gloriosos" que precederam a era neoliberal foi nada menos que uma guerra mundial.

Octávio LUIZ MOTTA FERRAZ
ESPECIAL PARA A FOLHA

OCTÁVIO LUIZ MOTTA FERRAZ, 44, é professor da faculdade de direito Dickson Poon e afiliado do Brazil Institute, ambos do King's College de Londres.

A Nova Razão do Mundo – Ensaio Sobre a Sociedade Neoliberal
AUTORES Christian Laval e Pierre Dardot
TRADUÇÃO Mariana Echalar
EDITORA Boitempo
Quanto R$ 73 (416 págs.)
AVALIAÇÃO muito bom


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