Folha de S. Paulo


Escravidão foi tabu para cidade de ex-escrava que estampará notas de dólar

David Duprey/Associated Press
Crianças andam de bicicleta perto da casa de Harriet Tubman Home na cidade de Auburn, Nova York
Jovens andam de bicicleta perto da casa de Harriet Tubman na cidade de Auburn, Nova York

Sete homens brancos, todos mortos há pelo menos 131 anos, nas sete notas do dólar. Esses dias estão contados.

A partir de 2020, Andrew Jackson, o presidente escravocrata que, ao morrer, em 1845, tinha 150 negros a seu dispor em sua fazenda em Nashville, será desalojado.

Ele irá para o verso da cédula de US$ 20. Na frente estará Harriet Tubman, ex-escrava que, ao ajudar centenas de cativos a escapar para o Canadá, entrou para a história como um "Moisés de seu povo".

"O rumor é que o velho Andrew ainda está atrás de Harriet", brinca Bill Jarman, 73.

Ele dirige um pequeno museu sobre a abolicionista em Cambridge, Maryland. Fica na rua Race, que em inglês significa tanto "raça" quanto "corrida".

Dois conceitos, diz, que Harriet entendia bem. Acredita-se que ela nasceu em 1822, a poucos quilômetros dali.

Em 3 de outubro de 1849, o jornal local publicou um anúncio de Eliza Ann Brodess: oferecia US$ 300 por três fugitivos da "cor de uma castanha". Harry, 19, "tem um quisto sob a orelha". Ben, 25, "fala muito rápido quando lhe dirigem a palavra". E Minty, 27, "é agradável de olhar".

Hoje exposto no museu, o classificado remete à fuga fracassada de três irmãos. Minty Ross tentaria de novo, sozinha. Ainda em 1849 chegou à Filadélfia, onde a escravidão já não era mais aceita.

Para despistar eventuais "caçadores de negros", Minty mudou de nome: Harriet Tubman. Voltou à Maryland dezenas de vezes, para resgatar outros escravos. As jornadas duravam dias, a pé, a cavalo, de trem ou barco.

Geralmente começavam no sábado –para ganhar tempo, pois o jornal com boletins como o de Eliza Ann não circulava aos domingos.

Harriet carregava uma arma para ameaçar possíveis desistentes: "Ou você vai ser livre ou vai morrer". Também drogava bebês para que não chorassem e colocassem todos em perigo.

A vida lhe ensinou desde cedo a ser durona. Vendida aos 6 anos, ficou tão nervosa na companhia dos "donos" brancos que não conseguiu beber o leite oferecido.

Biógrafos contam que a filha da cozinheira dormia no chão da cozinha e comia sobras, com os cachorros. Babá da família, era chicoteada se pregasse os olhos à noite: não podia permitir que o choro do neném acordasse a mãe.

SONHO REALIZADO

Em 1913, o "New York Times" reportou em dois parágrafos a morte da abolicionista que virou enfermeira e espiã das tropas do Norte, que defenderam o fim da escravidão no conflito nacional.

Harriet tinha 91 anos e vivia num asilo que fundou em Auburn (Nova York) para negros idosos e indigentes.

Nada que Bill Jarman tenha aprendido em seus tempos de estudante, nos anos 1950. "Nunca falávamos dela ou da escravidão."

Na década seguinte, começaram a falar, e na marra. Em 1967, bombeiros brancos se recusaram a apagar um incêndio que consumiu dois blocos da "área negra" da cidade, após confronto entre polícia e ativistas dos direitos civis. Temiam represálias, afirmaram.

A violência, diria tempos depois o ex-líder dos Pantera Negras (grupo radical de defesa dos direitos dos negros) H. Rap Brown, que passou por Cambridge no dia, "é tão americana quanto uma torta de maçã".

Hoje, metade dos 12 mil habitantes de Cambridge é afro-americana. Muitos –como o diretor do museu– têm o sobrenome dos donos de seus antepassados. A praxe, à época, era rebatizar escravos, como "etiquetas" num produto, diz Jarmon.

A renda média anual, em 2013, era de US$ 32,5 mil, enquanto a nacional beirava os US$ 52 mil.

Mãe solteira de dois filhos, a taxista Shakia Roberts, 35, acha que sua geração é mimada. Ninguém mais a barra numa piscina por ser negra e "poder sujar a água" (aconteceu com sua mãe).

Depois desta "linda mulher que foi Harriet", Shakia elege como atual ícone da negritude a primeira-dama americana, Michelle Obama.

Harriet não será a primeira face feminina no dólar –por breves períodos do século 19, a primeira-dama Martha Washington valia US$ 1, e a indígena Pocahontas esteve na traseira dos US$ 20.

Em 2014, uma moradora de Cambridge, Sofia, 8, escreveu ao presidente dos EUA pedindo mais mulheres no dólar, "porque não existiriam homens se não fosse por elas".

Sugeriu 12 nomes –entre eles Tubman, Hillary Clinton e Michelle Obama.

Em abril, uma assistente de Barack Obama lhe telefonou para dizer que "seu sonho foi realizado".

"Todo grande sonho começa com um sonhador", disse Tubman um século antes de Martin Luther King (1929-1968) ousar ter o seu.


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