Folha de S. Paulo


Podcast se populariza, mas há dúvidas sobre interesse da Apple pelo formato

Chance Chan/Reuters
Trabalhadores se preparam para abertura da loja da Apple na China: podcast é dúvida
Trabalhadores se preparam para abertura da loja da Apple na China: podcast é dúvida

Steve Jobs colocou seu talento como mestre das vendas em teste quando, em 2005, ele introduziu o novo software da Apple para download de áudio digital. O formato era tão incipiente que ele teve dificuldade para descrevê-lo.

"É como um TiVo para o rádio ou seu iPod", ele disse. "Não só o novo formato é o 'Wayne's World' do rádio como as rádios reais estão correndo a adotá-lo".

Mas ele tinha certeza do potencial. "Está se tornando muito, muito empolgante", disse Jobs.

Ele estava falando de podcasts - programas ao estilo do rádio produzidos para a Internet, os quais, nos últimos anos, registraram uma explosão de popularidade. Hoje em dia, muitos podcasters amadores estão se tornando profissionais. Grandes organizações de mídia, em busca de respostas e de pontos positivos em um mundo digital confuso e em rápida mutação, estão lançando novos programas a cada semana. Os anunciantes começam a aderir, e os setor de capital para empreendimentos está investindo milhões em podcasts.

O que temos agora, em outras palavras, é um setor econômico, ao qual a Apple deu vida, essencialmente, e que ela continua a dominar. Mas nesse momento de triunfo para os podcasts, crescem as preocupações da comunidade dos podcasts quanto ao real interesse da Apple pelo formato.

Entrevistas com mais de duas dúzias de podcasters e funcionários da Apple revelam diversas queixas. Os podcasters dizem que se veem relegados a tentar convencer um único funcionário da Apple, se desejam mais promoção. O compartilhamento em mídia social é complicado. E para ganhar dinheiro, os podcasters precisam de mais informações sobre seus ouvintes, e a Apple está em posição única para fornecê-la. Os problemas, eles dizem, podem até abrir oportunidade a um concorrente.

"A falta de dados sobre os podcasts é meio chocante", disse Gina Delvaco, produtora de "Call Your Girlfriend", um programa popular sobre cultura pop e política.

No final do mês passado, a Apple levou sete dos mais importantes profissionais do podcast à sua sede em Cupertino, Califórnia, para que falassem de seus problemas a uma sala repleta de funcionários da empresa. Os presentes falaram ao "New York Times" sob a condição de que seus nomes não fossem revelados, porque assinaram acordos de confidencialidade. A companhia não faz promessas, disseram as fontes, mas diversas questões prementes para os podcasters foram discutidas em termos francos.

Depois que as apresentações foram concluídas, Eddy Cue, o executivo que supervisiona software e serviços na Apple, chegou para uma conversa fechada com o pessoal da empresa, de acordo com os participantes.
"Creio que todo mundo que esteja seriamente envolvido nesse espaço gostaria de pelo menos saber como o jogo termina", disse Chris Morrow, presidente-executivo da Loud Speakers Podcast Network. "As pessoas pensam que ainda falta acontecer alguma coisa".

POP

Os podcasts vêm crescendo rapidamente há anos, mas em 2014, "Serial", um programa que em sua primeira temporada acompanhou um caso de homicídio, se tornou o primeiro grande sucesso do formato. A temporada conquistou espaço na cultura pop, com 110 milhões de downloads.

Pelo ano passado, pelo menos 46 milhões de norte-americanos ouviam podcasts a cada mês. Este ano, o número chegou aos 57 milhões, de acordo com pesquisa da Edison Research.

Mas os podcasts são produto de uma era diferente para a mídia digital -e para a Apple. Quando Jobs apresentou o software atualizado para podcasts, em 2005, a empresa ainda estava reconquistando seu espaço no mercado, conduzida pelo sucesso do iPod. O iPhone só surgiria dois anos depois.

Agora, a Apple é a maior empresa de capital aberto do planeta, mas os podcasts geram receita direta virtualmente zero para a companhia. Talvez como resultado disso, o núcleo de podcasts que Jobs lançou na iTunes continua surpreendentemente inalterado. Compartilhar podcasts na mídia social, que basicamente não existia em 2005, ainda requer diversos cliques.

A promoção na iTunes, ainda uma das poucas maneiras confiáveis de criar audiência, especialmente para programas novos, é decidida por uma pequena equipe que atende a pedidos e contata os podcasters a seu critério. Entrevistas com pessoas dentro e fora da empresa deixam claro que a pequena equipe de podcast da Apple vem ouvindo queixas como essas - e agindo para acalmá-las - há anos.

A questão para os podcasters - e a Apple - é o que vem a seguir. A Apple tem pelo menos duas opções óbvias: correr para acomodar um setor que está rapidamente deixando para trás as suas origens, ou manter o segmento inalterado e sofrer o risco de perder sua influência sobre uma mídia que deve o próprio nome à empresa.

Até mesmo os podcasters estão indecisos: uma Apple mais distanciada não deixa de ter atrativos. "Haverá quem argumente que as coisas poderiam ter avançado de certo jeito", disse Andy Bowers, vice-presidente de conteúdo da Panoply, rede de podcasts da revista "Slate". Mas desde 2005, ele diz, "eles ofereceram um campo de jogo muito nivelado".

Em declaração, Cue, da Apple, disse que "temos mais gente do que nunca concentrada nos podcasts, o que inclui engenheiros, editores e programadores". Ele acrescentou: "Os podcasts têm lugar especial para nós, da Apple".

EXPANSÃO

Em termos de receita, os podcasts ainda são minúsculos se comparados aos setores de entretenimento e tecnologia. Nos seus dias iniciais, pessoas que faziam podcasts por hobby transformaram sua paixão em negócio e em trabalho de tempo integral. Agora, algumas das redes de podcasts e dos podcasters mais populares podem faturar milhões de dólares.

Os podcasters vendem anúncios por preços de entre US$ 20 e US$ 100 por mil ouvintes. Para podcasts com centenas de milhares - ou, em raros casos, milhões - de ouvintes, esses números logo se acumulam. O investimento publicitário renderá centenas de milhões de dólares para o setor este ano, disse Matt Lieber, cofundador da Gimlet Media, uma startup de podcasts que obteve US$ 7,5 milhões do setor de capital para empreendimentos.

Mas expandir muito mais o setor é complicado. A Apple não permite download pago de podcasts, por exemplo, e não tem estrutura para assinaturas pagas, algo de que muitos podcasters gostariam. A Apple manteve para os podcasts um modelo de publicidade exatamente como aquele que Jobs previu em sua apresentação de 2005.

Medir quantas pessoas estão ouvindo também resulta em resultados imprecisos, e representa fonte constante de frustração. Os podcasters sabem quantas vezes seus programas são baixados, por exemplo, mas não quantas pessoas de fato ouviram, ou até que ponto no programa os ouvintes avançaram.

Com dados como contagem de ouvintes e duração de audição - semelhantes aos que a Apple oferece a desenvolvedores de apps -, o setor poderia se acelerar rapidamente, disse Delvac, do "Call Your Girlfriend".

Mas ao contrário dos downloads de música, filmes e apps - fontes de bilhões de dólares em receita para a Apple, que recebe comissão sobre as vendas e assinaturas -, o incentivo financeiro dos podcasts para a empresa é limitado. A Apple leva sua comissão sobre a publicidade veiculada em podcasts, e todos os downloads são grátis, o que implica que isso tampouco gere receita. Na sua forma atual, os podcasts são efetivamente só mais um recurso grátis para ajudar a empresa a vender hardware.

E funcionam, quanto a isso. O serviço da Apple agora oferece mais de 325 mil podcasts. A companhia antecipa que ouvintes baixem mais de 10 bilhões de episódios em seus computadores, aparelhos móveis ou Apple TV até o final deste ano.

"A Apple construiu uma aldeia 10 anos atrás", disse Lieber. "Há coisas realmente interessantes na aldeia, e personagens interessantes. Mas a aldeia agora tem a população de uma cidade - e quando uma aldeia se torna uma cidade, precisa de infraestrutura nova".

RIVAIS

A abordagem conservadora da Apple pode estar criando uma oportunidade para concorrentes, como aconteceu no passado. O software iTunes da Apple ajudou a popularizar a música online, mas viu serviços de streaming como o Spotify e o Pandora criarem alternativas atraentes. A Apple pressionou a indústria do cinema a vender e alugar conteúdo online, mas a Netflix é que transformou as assinaturas de conteúdo filmado em um negócio que vale quase US$ 40 bilhões.

O Google abandonou seu app de podcast em 2012, mas este ano adicionou recursos de podcasting ao seu app de música, fornecido como padrão nos celulares que empregam o sistema operacional Android. Todd Cochrane, presidente-executivo da RawVoice, uma companhia que acompanha o mercado de podcasts, disse que a fatia da Apple no mercado é hoje de 65%, ante 70% um ano atrás. Ele atribuiu essa mudança quase que integralmente a uma "alta" no consumo de podcasts no sistema Android.

Em janeiro, o serviço de streaming de música Spotify começou a lançar um elenco ambicioso de podcasts. Entre as promessas da empresa aos podcasters, há hospedagem, streaming e dados amplos sobre os ouvintes. O Audible, serviço de audiobooks controlado pela notoriamente agressiva Amazon, está investindo pesadamente em conteúdo original de áudio sob a orientação de Eric Nuzum, antigo vice-presidente da National Public Radio dos Estados Unidos. (O "New York Times" está entre os parceiros do Audible.)

"Estamos distribuindo ativamente o nosso conteúdo em muitos lugares diferentes, agora", disse Laura Walker, presidente da New York Public Radio, cujos podcasts incluem "Radiolab", "Freakonomics", e "2 Dope Queens". "Tudo está crescendo", ela disse.

A posição da Apple como gigante do setor continua inconteste, porém, e os podcasters têm de descobrir como conduzir o complicado relacionamento com a companhia. A maioria deles envia mensagens para um endereço geral de e-mail da companhia. Para aqueles que têm contato direto, o relacionamento se centra em uma só pessoa: Steve Wilson.

Wilson, dizem os podcasters, funciona como coordenador dos podcasts da Apple, na prática. A atenção dele pode significar a diferença entre sucesso e fracasso - entre ter um podcast que dá lucro ou não.

A fonte mais consistente de novos ouvintes - em alguns casos, dezenas de milhares - é uma posição no alto da lista de podcasts da iTunes. Esse é o espaço que Wilson ajuda a controlar, e que os podcasters cobiçam. (Wilson encaminhou um pedido de entrevista ao relações públicas da empresa, que se recusou a permitir a conversa.)

"Até onde posso dizer, eles são grandes entusiastas dos podcasts", disse Jody Avirgan, que apresenta e produz podcasts para o FiveThirtyEight, um site de jornalismo esportivo da ESPN. "Mas eles têm milhares de programas e algo como seis vagas na home page".

A identidade e dados de contato de Wilson são compartilhados entre podcasters como um segredo suculento, e as preferências dele quanto a podcasts são debatidas furtivamente no setor, assim como as de seu chefe, James Boggs. A situação causa espanto aos podcasters: o que significa uma empresa do tamanho da Apple deixar as decisões sobre podcasts a cargo de uma pessoa só?

Da perspectiva Apple não é tão simples. Dos mais de 150 portais de podcasts da iTunes em todo mundo, 29 têm seleções pessoais, e alguém fazendo o mesmo papel de Steve Wilson. Qualquer mudança na forma pela qual a empresa lida com os podcasts poderia ter amplas ramificações.

Além disso, a lista de "Top Podcasts" da iTunes também é tema de constante especulação entre os podcasters. Uma aparente mudança no sistema este ano resultou em pequenos podcasts de fãs da Disney, e em um programa que nem havia sido lançado integralmente ainda, se verem alçados a uma posição comparável à de podcasts com centenas de milhares de ouvintes, de acordo com Nicholas Quah, editor do Hot Pod, um boletim sobre o setor.

Para os ouvintes, excentricidades como essas podem ser estranhas. Para os podcasters, que enfrentam dificuldades para demonstrar seu sucesso aos anunciantes, elas causam frustração.
"Creio que essa é uma questão que todo mundo proponha a toda empresa", disse a podcaster Delvac. "Como manter as partes boas do meu relacionamento inalteradas e conseguir mais do que quero?"

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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