"Estava numa feira expondo a cerveja quando um gringo apontou para o rótulo e perguntou: 'Alemão? Munich?'. 'Não, é do Complexo do Alemão, a favela'", contou aos risos Marcelo Ramos, 41, morador do conjunto de favelas na zona norte do Rio.
A Complexo do Alemão Lager, da qual o gringo levou três, foi lançada em junho de 2014, no Bistrô Estação R&R, na Nova Brasília, uma das comunidades do conjunto de favelas. A carta de cervejas do estabelecimento, criado em 2012, soma 300 rótulos.
A cerveja e o bistrô foram lançados por Marcelo e sua mulher, a ex-analista de recursos humanos Gabriela Romualdo, 35. O bom desempenho do negócio expandiu seu alcance. Há um mês e meio, abriram uma filial no Carioca Shopping, na zona norte.
O empreendedorismo de Marcelo começou com uma simples cerveja no horário do antigo emprego, como técnico de telecomunicações.
DEGUSTANDO
Um dia, depois de fazer a manutenção na linha telefônica de um bistrô na zona sul, ele decidiu experimentar uma cerveja de trigo. Gostou. Passou a degustar em outras casas especializadas e estudar sobre o assunto.
Após concluir um curso de sommelier oferecido por uma distribuidora especializada, Marcelo deu início ao projeto de abrir um bistrô na Nova Brasília. O local escolhido foi a garagem do sogro, no térreo do prédio onde mora com Gabriela, que deixou o emprego numa empresa de engenharia para assumir a administração do negócio.
Para começar, o casal investiu R$ 12 mil que havia juntado e obteve R$ 5.000 de empréstimo na AgeRio, agência do Estado que fomenta com empréstimos a juros baixos a expansão de empreendimentos em favelas com UPP (Unidade de Polícia Pacificadora).
A primeira preocupação veio da própria família, evangélica. "Para explicar a eles que o bistrô vendia cerveja 'gourmet' e que não teria bagunça, foi complicado", afirmou Marcelo.
O preço das cervejas -de R$ 15 a R$ 250- também foi motivo de desconfiança. "Meu sogro perguntou: 'Como você vai vender essas cervejas na favela se o litrão da Antarctica custa R$ 3,80?'."
O atendimento também era um ponto caro para Marcelo, que disse ter sido alvo de preconceito racial num restaurante. "Uma vez, fui a um bistrô, sentei na mesa e o garçom ficou olhando para minha cara de um jeito estranho, desconfiado. Falei para mim mesmo: 'Lá na favela isso não vai acontecer'."
O espaço da favela é modesto. A decoração, com uma coleção de garrafas e adesivos de cervejarias de vários países, luminárias e teto rebaixado em gesso, foi toda feita pelo casal com a ajuda de amigos. Cabem no máximo quatro mesas, além do balcão. Para compensar, são colocadas cadeiras na rua.
Os donos ainda estão se acostumando com o novo empreendimento no shopping. Ali o ambiente é mais espaçoso e sóbrio, ocupa um térreo e mezanino, e os clientes podem se sentar em sofás. Enquanto bebem, podem ler livros especializados.
Tudo é feito em família. O casal recebe ajuda dos parentes na cozinha e no atendimento, enquanto tenta equilibrar as atividades para cuidar do filho de dois anos. No bistrô, aos fins de semana, e no shopping, eles contam com três funcionários.
"O bistrô bombou. Começou a vir gringo de tudo o que é lugar. Eu comecei a me comunicar falando o estilo de cerveja, porque não falo inglês. Dizia: pilsen, lager, weiss e eles me entendiam."
A maré mudou quando o tráfico começou a fazer ofensivas contra as bases da UPP na região. Marcelo afirma que boa parte dos confrontos entre polícia e traficantes não ocorria na Nova Brasília, mas em outras favelas do Alemão.
Ainda assim, a violência reduziu significativamente a presença de turistas.
CERVEJA PRÓPRIA
Para manter a receita, o empresário pôs em prática uma ideia antiga: comercializar a própria cerveja. Ele havia feito um curso de sommelier e mantinha o hobby de fazer cerveja artesanal com amigos na cozinha de casa.
Para iniciar as vendas, ele precisava regularizar o negócio. Bateu à porta de algumas cervejarias em busca de parceria, mas as primeiras respostas foram negativas. "Quando a gente dizia o nome da cerveja, ninguém queria. Até nos chamaram de doidos", contou Gabriela.
Após a parceria com a cervejaria Allegra, a produção da cerveja tipo lager -de baixa fermentação e 5% de teor alcoólico- chegou a 120 garrafas por semana.
Quem vai à favela pode encontrar a garrafa por R$ 15,90. Nos demais locais da cidade, a unidade custa R$ 18,90. O casal também vende chope artesanal por R$ 5, no bistrô, e por R$ 8 no shopping.
Marcelo distribui a cerveja para lojas e feiras no centro e na zona sul do Rio na sua Kombi ano 1989, que em breve vai virar um food truck.
Em média, o casal fatura com todo o empreendimento R$ 6.000 por semana. Em plena crise, eles projetam ampliar o negócio. No início do mês, os dois conquistaram o prêmio de negócio criativo e empreendedorismo da AgeRio e receberam R$ 18 mil.
"Se a pessoa estiver trabalhando, não tem crise. A classe da comunidade é a que mais cresce. A crise está na galera que tem grana. Eles não sabem viver com pouco, mas a gente sabe se adaptar."