Folha de S. Paulo


Crise longa vai jogar pobres de volta para fora dos trilhos, diz Ricardo Paes de Barros

O governo precisa liderar um corte de gastos rápido e criterioso, ou o Brasil ficará estagnado por décadas e os pobres "sairão dos trilhos de novo", afirma o professor do Insper Ricardo Paes de Barros.

E esse pacto precisa ser feito apesar da crise política conflagrada pelo processo de impeachment. "Não existe ajuste prolongado. Se a crise perdurar, todos sairão perdendo."

O matemático e economista defende que a presidente Dilma Rousseff se dirija à nação, diga claramente o quanto o país pode gastar e defina cortes que sigam dois critérios principais: proteger os mais pobres e resguardar os programas eficientes.

"É preciso apelar para uma decisão técnica e não política, porque, se partir para a negociação, a quantidade de injustiça será bem maior."

Segundo ele, o ajuste fiscal exige também que a Constituição seja reinterpretada.

"Se continuarmos achando que os direitos econômicos, sociais e culturais estão acima da possibilidade orçamentária, será desastre econômico na certa", diz Paes de Barros, um dos principais especialistas brasileiros em desigualdade, pobreza, mercado de trabalho e educação.

Titular da Cátedra Instituto Ayrton Senna no Insper e coordenador do Núcleo de Pesquisa em Ciências para Educação do Centro de Políticas Públicas - CPP, ele diz que o ensino brasileiro precisa de uma revolução radical.

Para o pesquisador, o Plano Nacional da Educação é "dramaticamente tímido" e carece de "metas muito mais ousadas, que vão ser alcançadas pelo esforço e não pelo dinheiro".

Em entrevista à Folha, ele condena o ensino superior gratuito para quem pode pagar ("é o tipo do gasto social burro") e defende que os governos desestatizem a educação —desde que com uma boa regulação— para se concentrar na política e na estratégia.

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Folha - Qual o risco, para os avanços sociais recentes, de três ou quatro anos de recessão?

Ricardo Paes de Barros - Por que haverá três ou quatro anos de recessão? Não houve um grande desastre natural, uma guerra civil, uma gigantesca perda de atividade. Nossa crise foi inventada por nós mesmos. Se o Brasil se organizasse seriamente, uma recessão mais longa seria facilmente evitável.

Quem o sr. chama de "nós mesmos"? O governo federal?

O governo federal foi eleito. Nós mesmos o elegemos.

Mas a desorganização é consequência da política do atual governo ou é estrutural?

É de gastar mais dinheiro do que se tem. Da irresponsabilidade fiscal. O gasto brasileiro de hoje, como porcentagem do PIB, só se ajusta a uma curva exponencial [que tende ao infinito]. Com isso, a dívida passa a não valer nada, os agentes econômicos se defendem cobrando juros maiores, cortando a produção.

Se fosse uma família que gastou demais, precisaria apresentar um plano de longo prazo de como sair dessa confusão. Se o plano for crível, talvez até consiga mais crédito.

Se vivo num país em que o imposto cresce exponencialmente, tenho toda a razão do mundo de reclamar. É preciso definir que a carga vai ser de, digamos, 45% do PIB, para então poder pensar em simplificar a estrutura tributária, resolver o problema da Previdência etc.

Como resolver as atuais vinculações estipuladas pela Constituição?

Se a sociedade não decidir que o teto é x, nossa Constituição fará o gasto ser maior que o PIB. É preciso interpretar nossa Constituição como uma declaração de intenções, aspiracional, de implantação progressiva.

A Constituição dirá "quero chegar a uma sociedade em que a população tenha estes direitos" —excetuando, claro, os direitos civis e políticos, que não têm custos significativos. Não é preciso esperar para acabar com a discriminação, mas saúde gratuita para todos pode ser inviável.

A saída é definir o gasto, chamar o Congresso e discutir o que fazer. Colocamos na Constituição que tal benefício será conquistado progressivamente ou será preciso revogá-lo, porque é impossível pagar aquela conta.

Passa então por uma reforma constitucional?

Pode ser simplesmente uma interpretação da Constituição como uma meta, como é com os direitos humanos. Gerar uma crise fiscal porque é obrigatório cumprir uma regra não garante aquele direito.

Sergio Lima/Folhapress
BRASILIA,DF, BRASIL, 20-04-2013: 20h - Ricardo Paes de Barros, um dos mais importantes formuladores de políticas públicas contra a desigualdade, é servidor do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), órgão ligado à Presidência da República. Participou dos desenhos de programas sociais. (Foto: Sergio Lima/Folhapress, PODER) ***ESPECIAL*** ORG XMIT: AGEN1304292110529116
Ricardo Paes de Barros, titular da Cátedra Instituto Ayrton Senna no Insper

Há condições de pacto social e político com a situação que temos hoje? [minutos antes da entrevista, Eduardo Cunha havia anunciado que acataria o pedido de abertura do processo de impeachment da presidente Dilma].

Se não houver, o país vai ficar estagnado por décadas, não por quatro ou cinco anos. Alguém vai ter que organizar financeiramente o país, isso é prioritário e envolve fazer escolhas. Se continuarmos achando que os direitos econômicos, sociais e culturais estão acima das questões de possibilidade orçamentária não vamos a lugar nenhum. Será desastre econômico na certa. Mesmo com 100% do PIB o Brasil não consegue garantir vários desses direitos.

Usando sua metáfora da família, como fazer essa arrumação com parentes tão conflituosos como os que vemos hoje?

Acho que isso é mais consequência que causa. Se a família se reúne e não tem objetivo comum, é um salve-se quem puder. É preciso chamar todos e dizer: a proposta aqui é esta.

De quem é este papel? A presidente é o chefe dessa família?

A presidente é o líder máximo. Deveria se endereçar à nação e dizer "não podemos gastar mais do que temos, é preciso cortar e é justo cortar desta maneira". Não se pode improvisar, cortando onde dá, onde é mais fácil.

Mesmo que o processo de impeachment acabe sendo aberto, a presidente foi eleita e tem todas as condições para fazer isso.

O que impede que a presidente assuma esse papel?

O que não entendo nessa história é que não tem alternativa. O desajuste é de uma magnitude, e crescente no tempo, que, sem acordo com os credores, não há solução. Não há saída que não seja aparecer com uma proposta. Vai desagradar a alguns segmentos.

Como negociar com esses segmentos?

A proposta tem que ser baseada não em negociação, mas em princípios: "Escolhi cortar tudo o que não chega na metade mais pobre do Brasil, portanto vou cortar nisto e nisto". Quem for contra terá que reclamar do princípio, não da operacionalização.

Os gastos a ser preservados são educação, saúde e transferência de renda?

Será preciso olhar cada programa para não cortar os eficientes. Há a questão distributiva, mas também a da eficiência.

Como fazer isso se o Brasil quase não tem mecanismos de avaliação?

Esse é um problema grosseiro. Somos pegos numa crise e não sabemos se podemos cortar aqui ou ali.

Mas muitos desses programas têm similares em outros países. Dá para fazer uma avaliação rápida —imprecisa, ruim, cometendo injustiças que seriam evitadas se tivéssemos um sistema de monitoramento melhor, mas uma avaliação possível.

É preciso apelar para uma decisão técnica e não política, porque, se partir para a negociação, a quantidade de injustiça será bem maior. A decisão política tem que ser a dos critérios: proteger os 50% mais pobres, que têm 15% da renda.

Recentemente o sr. comparou a inclusão dos mais pobres a vagões que o Brasil havia adicionado ao trem, mas disse que a locomotiva precisava andar para carregá-los.

E o trem está parado.

Ou escorregando para trás. Os vagões vão descarrilar?

Um governo organizado sai dessa crise com facilidade. Mas precisamos fazer cortes rápidos, vultosos e que não afetem os pobres.

É perfeitamente possível fazer isso, pois este governo transfere uma quantidade de renda enorme para os 50% não pobres. Nosso sistema tributário e de gastos públicos é tremendamente desigual. Vamos gastar menos com quem consegue segurar a onda com menos gastos.

Qual o impacto de não fazer esses cortes?

É possível dar essa marcha à ré sem que os pobres lá atrás sintam nada. Se a locomotiva volta atrás, os primeiros vagões recuam sem pressionar os últimos, porque há espaços, como numa sanfona.

Mas há um limite. Em crise longa, perde todo mundo. Em crise curta, graças à enorme desigualdade brasileira, é possível resolver sem prejudicar os pobres. A desigualdade nos salários do setor público é muito maior e mais resistente que a do setor privado. É preciso conter os altos salários do setor público e fazer um corte com critérios. Mas não existe ajuste de longa duração. Se transformarmos uma crise de curta duração em uma de longa duração, estamos dizendo para os pobres: "Não tem jeito. Vocês vão sair dos trilhos de novo".

RAIO-X

RICARDO PAES DE BARROS

Formação Engenharia eletrônica pelo Instituto Tecnológico da Aeronáutica (ITA), mestrado em estatística pelo Instituto de Matemática Pura e Aplicada (Impa), doutorado em economia pela Universidade de Chicago, pós-doutorado pelas universidades Yale e de Chicago.

Carreira Pesquisador e diretor do Conselho de Estudos Sociais do Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada (Ipea), professor visitante da Universidade Yale, subsecretário de Ações Estratégicas da Secretaria de Assuntos Estratégicos, professor titular da Cátedra Instituto Ayrton Senna no Insper e coordenador do Núcleo de Pesquisa em Ciências para Educação do CPP - Centro de Políticas Públicas (atual)

Áreas de estudo Desigualdade, pobreza, mercado de trabalho, produtividade do trabalho, educação, primeira infância, juventude, demografia e imigração


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