Folha de S. Paulo


Marinheiros turcos vivem em navio cargueiro atracado com ratos e baratas

Alex Cavalcanti/Folhapress
Tripulantes do cargueiro Iron Trader, os turcos Adnan Menderez, 40, e Ali Ozdeniz, 49, estão atracados desde novembro de 2014 no porto de Vitória (ES)
Tripulantes do cargueiro Iron Trader, os turcos Adnan Menderez, 40, e Ali Ozdeniz, 49

Eles passam os dias a bordo de um navio em condições insalubres —com ratos e baratas aos montes e comida vencida— e sobrevivem da caridade da população local, que doa água e alimentos.

Essa é a situação de dois marinheiros turcos que estão num cargueiro atracado desde janeiro, em Vitória (ES).

O problema ocorre porque a empresa dona da embarcação não paga os salários, segundo os tripulantes, há quase dois anos. Sem dinheiro, a embarcação perdeu as condições para navegar. O caso está parado na Justiça do Trabalho.

Inicialmente formada por nove pessoas —cinco turcos, três russos e um sírio—, a tripulação do Iron Trader começou a ter problemas em Istambul, na Turquia, de onde partiu em dezembro de 2013. Passaram por cinco países, incluindo a Nigéria.

Desde então, chegaram a ser presos no país africano após ser descoberto que um dos contêineres do navio tinha como carga 3.000 cartuchos de munição 20 mm.

"Você faz ideia do que é uma prisão nigeriana? Passamos por todo tipo de humilhação", disse o superintendente do navio, Ali Ozdeniz, preso por 37 dias.

Segundo ele, o contêiner com a munição veio lacrado da origem. "Não temos autorização para abri-los."

Só nove meses depois a Justiça nigeriana os liberou e o navio pôde seguir viagem.

"O dono do navio sempre prometia nos pagar. De promessa em promessa, chegamos ao Brasil", conta o engenheiro chefe do Iron Trader, Adnan Menderes.

Embora navegue sob bandeira panamenha, o navio pertence a um armador turco, o Iron Group Inc., que foi procurado, mas não encontrado pela reportagem.

Alex Cavalcanti/Folhapress
Navio cargueiro Iron Trader, atracado no porto de Vitória (ES)
Navio cargueiro Iron Trader, atracado no porto de Vitória (ES)

PESCA E ÁGUA DA CHUVA

No litoral do Espírito Santo, os tripulantes descobriram o segundo e mais longo problema: não havia um agente local contratado, sem o qual seria impossível atracar, descarregar e reabastecer o navio.

Ancorados inicialmente em Vila Velha (região metropolitana de Vitória), recorreram à Marinha. "Tivemos que viver também de alguma pesca e água da chuva", relembra Menderes.

A Folha visitou o navio, uma enorme caixa de aço sem janelas nem energia elétrica. Um pequeno gerador funciona algumas horas por dia —o suficiente para ver um pouco de TV, recarregar os celulares e, com sorte, preparar uma refeição quente.

Sem dinheiro, nem o lixo é coletado, já que é preciso pagar uma taxa à Codesa, estatal proprietária do cais.

A Codesa disse, em nota, que o Iron Trader atracou em Vitória "por questão humanitária" e com anuência das autoridades —PF incluída.

Segundo a companhia, a dívida referente à estadia da embarcação no EstadoS era de R$ 623 mil em 15 de setembro.

Em salários, de acordo com o advogado Nikolai Krassitschkov, que representa a tripulação, o Iron Group deve cerca de R$ 967 mil.

Calcula-se que a sucata do navio valha entre R$ 1,1 milhão e R$ 1,9 milhão. Dependendo do negócio, não será possível atingir o total de dívidas de estadia e salários atrasados —R$ 1,6 milhão.

Aos poucos, os nove tripulantes foram deixando a embarcação. No último dia 15, foi a vez de Nikoloz Todarchuk, que retornou à Geórgia. As passagens foram compradas com dinheiro arrecadado entre empresários e amigos do advogado Krassitschkov.

Segundo a tripulação, a carga transportada eram geradores elétricos fabricados pela Hyundai Heavy Industries. O material foi entregue à Eletronorte. O dinheiro, US$ 1,5 milhão, foi depositado na conta do armador, mas a tripulação diz que nunca recebeu nada da empresa.

Nenhum representante da Hyundai Heavy Industries no Brasil foi localizado para comentar o caso. Já a Eletronorte, a Embaixada da Turquia, em Brasília, e o Consulado da Turquia em São Paulo foram procurados pela Folha, mas não responderam.

ESPERA SEM FIM

Enquanto o caso não é resolvido, os dois tripulantes restantes esperam sua vez. "Eu não vejo a hora de voltar, mas não posso sair daqui sem meus salários", desabafa Menderes.

O superintendente Osdeniz completa: "A maioria das pessoas não aguentaria dois dias na situação que nós estamos há dois anos".


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