Folha de S. Paulo


O milagre chinês de anos atrás não existe mais, diz especialista em China

Silvia Costanti/Valor/Folhapress
Data: 17/10/2013 Editoria: Brasil Reporter: Flavia Lima Local: Sao Paulo, SP. Pauta: A Associacao Nacional das Institui›es de CrŽdito, Financiamento e Investimento (Acrefi), realiza o 8¼ Semin‡rio Internacional sobre crescimento. Setor: Tags: evento, palestra, professor. Personagem: Michael Pettis, professor da Universidade de Pequin, especialista em China, fotografado durante o Seminario em Sao Paulo. Foto: Silvia Costanti / Valor ***FOTO DE USO EXCLUSIVO FOLHAPRESS***
Michael Pettis, economista especialista em China, em evento em São Paulo

Entre os especialistas em China, o economista Michael Pettis é um dos principais representantes da ala dos "sinocéticos" —aqueles que há anos preveem uma desaceleração acentuada da segunda economia do mundo.

O principal motivo do ceticismo é a dívida chinesa, que continua crescendo duas vezes mais do que o PIB. Apesar disso, Pettis acha um exagero atribuir somente à China o risco de uma nova crise global. "Estamos num período tão ruim para a economia mundial que qualquer má notícia causa abalo. Parte disso nada tem a ver com a China."

Pettis antevê graves problemas no Brasil decorrentes da desaceleração chinesa. Para ele, os preços de commodities vão continuar caindo. "É particularmente preocupante observar que nos últimos 10 a 15 anos o Brasil parece ter aumentado sua dependência de exportação de commodities."

Além de um estudioso da economia chinesa, Pettis convive intensamente com outras facetas do país. Vivendo há 13 anos na China, onde leciona na Universidade de Pequim, ele também ficou conhecido como um importante empresário da área musical, criando casas de shows na capital chinesa e promovendo bandas de rock locais.

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Folha - Não é novidade que a economia chinesa está em desaceleração. Por que então o pânico dos mercados neste momento?

Michael Pettis - Tem a ver tanto com a China quanto com o estado da economia mundial. Os níveis de dívida estão muito altos no mundo. A demanda está baixa e continuará assim, porque ela está estruturalmente relacionada a desigualdade de renda e outros fatores demoram muito para mudar. Estamos num período tão ruim para a economia mundial que qualquer má notícia causa abalo.

Parte disso nada tem a ver com a China. Por outro lado, nem todos reconhecem que o milagre chinês de alguns anos atrás não existe mais e que a realidade agora é bem diferente. Estamos nos ajustando a isso. Para muita gente é uma surpresa. Também não era segredo que a China não é governada por gênios, mas pelo visto muita gente não sabia. Os acontecimentos recentes mudaram a percepção sobre a China, não a realidade.

As medidas recentes adotadas pelo governo chinês, entre elas o corte de juros e a redução do depósito compulsório dos bancos para estimular o crédito, serão suficientes para conter a turbulência do mercado?

Não. Houve uma época em que sinalizações do governo eram suficientes para influenciar o mercado acionário, mas agora é necessário um movimento sincronizado de compra para isso. O mercado caiu tanto que provavelmente vai se recuperar temporariamente, mas mesmo neste piso recente ainda é um dos mercados acionários mais caros do mundo.

Alguns economistas não concordam com as suas previsões de que 3% a 4% seria a média de crescimento anual no governo do presidente Xi Jinping, no máximo. Falei com Stephen Roach (professor da universidade Yale e execonomista chefe do Morgan Stanley) duas semanas atrás, e, para ele, a taxa de 3% ao ano é "um exagero total. A economia chinesa vai se estabilizar crescendo a 6% a 6,5% ao ano".

Na realidade a maioria dos economistas não concorda comigo. Eu respeito muito Steve Roach e leio todas suas pesquisas, mas acho que ele, como a maioria dos economistas, subestimou sistematicamente o impacto negativo da disparada da dívida da China. Um resultado disso é que a queda do crescimento chinês está sempre surpreendendo os economistas. Quase exatamente há dois anos, por exemplo, Roach sugeriu que o crescimento chinês iria se estabilizar em 7,5% a 8%. Eu acho que os 6% a 6,5% que ele prevê hoje vão estar corretos apenas para 2015 a 2017, mas até 2018 ou mesmo até o fim de 2017, ninguém mais vai acreditar nessa previsão. Eles vão continuar a reduzir suas projeções, como vêm fazendo todo ano.

Como você resumiria a "hipótese Pettis" para o modelo de crescimento chinês e a atual queda na atividade? O que tornou a crise inevitável e você prevê um "pouso forçado"?

Minhas previsões são feitas a partir da minha obsessão com a história econômica dos países em desenvolvimento. Houve dúzias de "milagres econômicos" nas últimas sete décadas desde a Segunda Guerra Mundial, e os mais famosos foram o da União Soviética nos anos 50, do Brasil nos anos 1960 e 1970, e Japão nos anos 80. Era amplamente "sabido" nos anos 60 que a União Soviética iria ultrapassar os Estados Unidos entre 1984 e 1997, de acordo com (o economista prêmio Nobel) Paul Samuelson em 1961. Nos anos 80, "sabia-se" que o Japão iria ultrapassar os EUA antes do ano 2000.

Mas cada um desses milagres econômicos acabou tendo ajustes surpreendentemente difíceis e uma explosão na dívida, que às vezes levou a uma crise, como no Brasil, e às vezes a um longo período de estagnação, como no Japão e na União Soviética. O "surpreendentemente" difícil processo de ajuste da China, em outras palavras, só é surpreendente se você, ao assistir ao mesmo filme pela décima segunda vez, esperar um final diferente.

Eu continuo achando que ou teremos um ajuste sem disrupção, em que o crescimento continua a cair 1 ponto a 1,5 ponto porcentual ao ano e atinge uma média de menos de 3% a 4% na década entre 2012 e 2022, ou Pequim vai achar politicamente muito difícil permitir que o crescimento caia na velocidade que deveria, e vai forçar o crescimento do crédito para manter um avanço de PIB de 7% ao ano. Se escolher o segundo caminho, a dívida, que atualmente cresce 13% ao ano para um PIB de 7%, irá se tornar excessiva, talvez em dois a três anos, e depois disso o crédito não vai conseguir crescer na velocidade necessária e o crescimento vai entrar em colapso.

A China conseguirá atingir a meta de crescimento oficial do PIB este ano, em torno de 7%?

Deve ficar um pouco abaixo de 7%, mas isso é perda de tempo. O Brasil também poderia ter 7% de crescimento se quisesse, contanto que tivesse capacidade ilimitada de tomar crédito. O problema é que não é um um crescimento saudável. A China pode ter 8% de crescimento se quiser, mas em dois anos estará quebrada.

O mercado ainda não entendeu que alto crescimento é um mau sinal. Toda vez que o crescimento avança todos ficam felizes, mas não se dão conta de que isso significa também o aumento da dívida. A dívida continua crescendo a uma velocidade duas vezes maior que o PIB. Isso não é sustentável.

As reformas necessárias na China estão sendo implementadas no ritmo necessário?

Até agora, Pequim fez o que eu esperava que fizesse. Mas a etapa mais difícil das reformas é a próxima, que envolve transferir renda do setor estatal, ou seja, tirar riqueza de interesses poderosos e passar para os cidadãos comuns. Precisamos acompanhar atentamente o processo nos próximos dois a três anos, para determinar quão segura Pequim está de que vai conseguir implementar essas transferências.

Levando-se em conta dados positivos, como a recuperação da economia americana, o temor de uma crise global não lhe parece exagerado?

Os EUA sempre se recuperam rapidamente. O problema é que essa recuperação corre o risco de travar. O dólar tem estado incrivelmente forte e isso vai afetar o emprego e o comércio [nos EUA]. Japão, China e Europa têm despejado seu excesso de produção no resto do mundo. A Europa tem sido extraordinariamente irresponsável.

Por um tempo os EUA não perceberam, porque os excedentes desses países estavam sendo absorvidos por países como o Brasil, Peru, Chile e Austrália, por causa dos preços em queda das commodities. Mas é impossível para esses países continuar absorvendo os excedentes, mesmo se os preços dos metais caírem a zero. Isso significa que eles serão absorvidos pelos EUA, o que poderá ter um impacto negativo no crescimento e no desemprego. Portanto, os problemas não foram resolvidos. Eles foram apenas mascarados pelo colapso dos preços de metais e energia, mas isso é temporário. Os EUA estão em recuperação, mas ela poderá sair dos trilhos. Enquanto isso temos a Europa em má forma como nunca e a China em desaceleração.

Quanto ao Japão, a esta altura já podemos concluir que Abenomics não funcionou para o crescimento japonês e claro, os países em desenvolvimento, que há alguns anos pareciam imunes aos problemas nos EUA e na Europa, estão sendo gravemente afetados. Não sei de onde pode vir o crescimento. Talvez da Índia, que tem enormes necessidades em infraestrutura, se conseguir melhorar sua credibilidade. O problema é que os países que precisam investir não tem credibilidade suficiente para fazer empréstimos, e os que podem tomar empréstimos não estão investindo nem consumindo. Portanto, não sei de onde o crescimento pode vir.

Portanto, o maior risco para o crescimento do PIB global não vem só da China...

A China é o maior componente aritmético do crescimento global, mas não contribui mais como antes, porque não está gerando demanda. O ajuste na China, na realidade, poderá ser bom para o mundo, porque se sua economia se reequilibrar, seu superávit irá contrair.

Isso seria positivo para o mundo, mas ainda assim é um impacto pequeno. Significa apenas que a China irá subtrair um pouco menos do crescimento global. Ainda restarão os demais problemas. A China é apenas parte de um cenário mundial feio.

Como o Brasil deve se ajustar a essa China pós-milagre econômico?

Há seis anos vou ao Brasil e sempre alertei que o preço do minério de ferro iria desabar. Nos anos 90, com grande esforço, o Brasil conseguiu reforçar sua indústria e se afastar da dependência de commodities. Mas quando os preços das commodities explodiram, na última década, o governo esqueceu essa importante lição. Basta olhar para a história do país para saber que é uma péssima estratégia, porque os preços de commodities não permanecem altos.

Por outro lado, à medida em que a China se reequilibra, isso é bom para o setor industrial de países em desenvolvimento. Manufaturas de países como o Brasil podem ganhar mais competitividade. A chave é investir em infraestrutura, mas isso não é fácil num momento de escassez de crédito. Esse é o desafio do Brasil.

A economia brasileira já foi afetada pela desaceleração chinesa, principalmente pela queda nos preços das commodities. Quão graves serão os efeitos?

Muito graves. Vivemos em um mundo com demanda persistentemente fraca, causada por níveis historicamente altos de desigualdade de renda, e vai levar muitos anos até que isso mude. Em 2012, eu disse a meus amigos no Brasil, Peru e Austrália que o preço das commodities ia cair mais de 50% até 2015.

Isso já aconteceu, mas ainda temos muito caminho pela frente. Acho que os preços de commodities como minério de ferro vão continuar caindo, pelo menos mais 30% a 50% A China desacelerou, mas ainda tem um longo caminho até chegar o crescimento chegar ao piso.

Você acompanha as economias da América Latina. Em seu blog, você diz esperar que "antes do fim da década ou pouco depois disso teremos uma onda de calotes em dívida soberana ou reestruturações de dívida na América Latina e outros países do mundo em desenvolvimento." Onde fica o Brasil nesse cenário?

Eu não acompanho mais o Brasil tão de perto para dizer com grande segurança, mas acho que o perfil da dívida do país é muito ruim e o crescimento global está longe de chegar a seu nível mais baixo.

É particularmente preocupante observar que nos últimos 1015 anos o Brasil parece ter aumentado sua dependência de exportação de commodities, apesar de todas as advertências de economistas brasileiros mais velhos, que se lembram quão perigosa é essa dependência. Eu temo que o Brasil seja de fato um dos países que que precisamos acompanhar muito de perto.

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  • RAIO-X MICHAEL PETTIS, 56

Origem: nascido em Zaragoza, Espanha, de mãe francesa e pai americano

Formação: mestre em relações internacionais e finanças pela Universidade de Columbia (EUA)

Carreira: trabalhou 14 anos em bancos de investimento em Nova York; vive na China desde 2002, onde é professor de finanças da Universidade de Pequim e dono de um selo de música independente


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