Folha de S. Paulo


China tem histórico de promessas ao Brasil que não saíram do papel

Em seu livro "A Era da Ambição", lançado recentemente no Brasil, o jornalista americano Evan Osnos observa que os números são um refúgio habitual para os que estudam a China moderna –com sua coleção incomparável de superlativos econômicos–, mas nem sempre explicam sua complexidade.

Nesta terça-feira (19), a presidente Dilma Rousseff recebeu no Palácio do Planalto o primeiro-ministro chinês, Li Keqiang, e assinou 35 acordos bilaterais nas áreas de planejamento, infraestrutura, comércio, energia, mineração, entre outras, no valor de mais de US$ 53 bilhões, de acordo com o governo brasileiro. Dilma viajará à China em 2016 para estreitar ainda mais o relacionamento entre os países.

Na véspera da visita oficial ao Brasil, o número grandioso dos US$ 53 bilhões roubou as atenções. Uma cifra "estratosférica", nas palavras do subsecretário-geral do Itamaraty José Alfredo Graça Lima, que, mesmo assim, havia confirmado a estimativa bilionária (os chineses, não).

Outros diplomatas brasileiros que acompanharam de perto os preparativos da viagem são bem mais céticos. O principal problema do cálculo é que uma das maiores fatias do bolo corresponde a um projeto que ainda está longe de sair do papel e cujo preço final ninguém sabe direito –as projeções variam de US$ 5 a US$ 12 bilhões. Proposta pela China para ligar portos do Brasil e do Peru, a Ferrovia Transoceânica foi recebida com mais entusiasmo em Lima que em Brasília. Para começar, não está claro se ela de fato alcançaria seu maior objetivo, que é reduzir o custo das exportações de commodities do Brasil para a China, usando a saída pelo Pacífico.

Joel Rodrigues - 16.jul.2014/Folhapress
O líder chinês, Xi Jinping, em visita ao Brasil no ano passado
O líder chinês, Xi Jinping, em visita ao Brasil no ano passado

"É importante analisar com muito cuidado a viabilidade econômica e financeira do projeto, porque ele não é simples e há outras iniciativas em curso, como as ligação entre Chile, Bolívia e Peru", disse à Folha o presidente do Banco de Desenvolvimento da América Latina, Enrique García, em Pequim.

O projeto está engatinhando. Na visita de Li Keqiang será criado um grupo de estudo para avaliar a viabilidade do projeto. A China, embora esteja disposta a financiar parte do projeto, tentou empurrar o pagamento do estudo para o Brasil, sem sucesso, segundo a Folha apurou. Além do custo, uma das principais questões que o estudo terá que responder é sobre o impacto ambiental, já que em princípio o trajeto da ferrovia atravessa a Amazônia.

Segundo um advogado com longa experiência na área ambiental, que pediu para não ser identificado, o projeto deverá sofrer intensa oposição de organizações de defesa do meio ambiente dos dois países e do Ministério Público federal, que certamente recorrerão à Justiça e a órgãos interamericanos de direitos humanos. Ele lembra que em princípio a obra passaria por ecossistemas frágeis como a Amazônia e os Andes, bem como, dependendo do traçado, pelo interior de várias áreas protegidas por lei.

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Isto levaria a grandes atrasos nas obras, como no caso das hidrelétricas do Madeira, Jirau e Belo Monte. Projetos lineares como rodovias e ferrovias são frequentemente paralisados por movimentos sociais que buscam chamar atenção para os seus pleitos, diz ele.

Para Pequim, viável ou não, o projeto da Ferrovia Transoceânica atende a um interesse imediato, que é diversificar investimentos e exportar o excesso de capacidade em construção de infraestrutura, num momento de desaceleração de sua economia. Com reservas internacionais de quase US$ 4 trilhões, os chineses tem fôlego de sobra para investir.

"A China tem capacidade de investimento, tecnologia e experiência nesta área e os países da América Latina tem necessidade de infraestrutura, portanto é uma oportunidade de consolidar a relação econômica e comercial", afirma Zhou Zhiwei, diretor do centro de estudos do Brasil da Academia de Chinesa de Ciências Sociais.

De fato, um dos slogans mais repetidos pelo governo chinês para promover sua diplomacia da infraestrutura é que ela gera uma relação "win-win" (boa para todos, em inglês). No caso do Brasil, o histórico recente de promessas não cumpridas não fortalece a credibilidade dos chineses. Entre os resultados mais esperados da visita do premiê Li Keqiang ao Brasil estão a suspensão do embargo à carne bovina brasileira e a compra de 60 aeronaves da Embraer. Ambos foram anunciados durante a visita ao Brasil do presidente chinês, Xi Jinping, em julho de 2014, mas até agora não saíram dos discursos.

O exemplo mais marcante de projetos que ficaram na promessa foi o investimento de US$ 12 bilhões da fabricante de computadores Foxconn no Brasil, anunciado pelo governo Dilma em 2011, mas que jamais chegou perto desse valor.

Para um economista especializado nas relações entre China e a América Latina, o que espanta nas notícias sobre a atual visita do premiê chinês ao país é como elas estão totalmente "fora da realidade", com a conivência do governo brasileiro. A começar pela cifra de US$ 53 bilhões, que leva em consideração possíveis investimentos chineses em infraestrutura como se já fossem fato consumado.

Ele lembra que o otimismo ignora a legislação brasileira, segundo a qual há a necessidade de licitação pública para os projetos. O corredor Brasil-Peru, por exemplo, só poderá ser construído por meio de licitações, e o governo brasileiro ainda não parece ter sequer definido o modelo das concessões, afirmou o economista, também pedindo para não ser identificado.

Outra possível contratempo pouco mencionado para a implantação da Ferrovia Transoceânica é que os trens sairão do Brasil com commodities rumo ao Pacífico, mas o governo peruano já deixou claro que quer enviar algo no trajeto de volta, o que também terá que ser negociado.

Tudo isso somado, significa que a topografia é apenas um dos desafios para tirar o projeto do papel.


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