Folha de S. Paulo


Quatro consultorias têm papel central nas operações em paraísos fiscais

Por mais de uma década, os gurus tributários na PricewaterhouseCoopers ajudaram a Caterpillar Inc., a fabricante norte-americana de equipamentos pesados, a transferir dos Estados Unidos para uma subsidiária na Suíça os seus lucros com a divisão de peças de reposição.

Nada mudava, exceto a contabilidade. As peças continuavam a ser fabricadas e enviadas para um depósito em Morton, no Estado de Illinois, e depois despachadas para revendedores independentes. Mas os lucros eram contabilizados na subsidiária suíça, que pagava impostos de menos de 6% ao ano, muito inferiores aos 29% que a Caterpillar teria de pagar nos EUA.

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Em 2008, integrantes da PwC ficaram preocupados. A estratégia poderia estar ameaçada pela decisão da Caterpillar de trazer alguns gerentes da Suíça para os EUA. A mudança poderia chamar a atenção a respeito das operações da empresa no paraíso fiscal europeu.

Thomas F. Quinn, um sócio da PwC que havia ajudado a fazer o planejamento tributário da Caterpillar, escreveu a um colega da consultoria. Se eles quisessem manter a estratégia viva, teriam de "criar uma história" que "colocasse alguma distância" entre os gerentes suíços e a divisão de peças de reposição da Caterpillar.

"Prepare-se para dançar um pouco", disse Quinn.

O colega que recebeu o aviso na PwC, o diretor Steven Williams, respondeu: "Que se dane. Nós todos vamos estar aposentados quando isso... aparecer numa auditoria 'Baby boomers' se divertiram e deixam a conta para ser paga pelas crianças".

Numa audiência no Congresso dos EUA no primeiro semestre de 2014, o senador Carl Levin classificou esses diálogos registrados em e-mails como a arte de criar "irrealidade" -a estratégia de transferir lucros dos EUA para a Suíça. Uma investigação conduzida por Levin revelou que a PwC explorou brechas legais para ajudar a Caterpillar a transferir US$ 8 bilhões de lucros dos EUA para a Suíça -e assim reduzir seus impostos em US$ 2,4 bilhões.

Esse caso sobre a estratégia suíça orquestrada pela PwC para a Caterpillar é o último encontrado numa série de investigações que iluminam o papel obscuro das quatro maiores firmas de consultoria e auditoria, as "4 grandes" PwC, KPMG, Ernst & Young e Deloitte, em operações no sistema financeiro de empresas offshore.

Uma pesquisa em processos judiciais, informações de governo e arquivos secretos de empresas em paraísos fiscais realizada pelo ICIJ (Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos) revela que as "4 grandes" desempenham o papel central de arquitetas do sistema de offshores para montar transações internacionais.

Em Luxemburgo, documentos internos da PwC revelados pelo ICIJ mostram que a consultoria ajudou a montar estratégias tributárias criativas para empresas gigantes como Pepsi, IKEA e outras mais de 300 corporações.

Nos EUA, as autoridades acusam a KPMG de ter oferecido abrigo tributário em paraísos fiscais que produziu bilhões de dólares em prejuízos falsos para seus clientes ricos.

Em Dubai, grupos anticorrupção argumentam que a Ernst & Young ajudou o maior processador de ouro do Oriente Médio a adotar práticas obscuras que podem ter violado os padrões internacionais de comércio de ouro.

Em Nova York, as autoridades acusam a Deloitte de ter ajudado um banco britânico a violar as sanções dos EUA contra o Irã. A instituição financeira teria submetido um relatório que omitia informações sobre como poderia estar desrespeitando controles a respeito de lavagem de dinheiro.

"Essas empresas têm de funcionar supostamente em honra e integridade para ser cães de guarda, mas elas estão tão grandes agora que tudo se resume a ganhar dinheiro", diz Francine McKenna, uma contadora que trabalhou para a PwC e KMPG e que agora escreve o blog "re: The Auditors" (http://retheauditors.com/). "Elas não estão preocupadas com reputação porque tudo isso não afetou a habilidade que têm de se tornarem maiores e maiores e maiores".

As "4 grandes" negam que suas práticas sejam de baixo nível. A Ernst & Young disse ao ICIJ que "opera estritamente dentro da lei e tem controles exaustivos" que garantem à consultoria seguir as regras e leis. A KPMG e a PwC afirmaram que têm códigos de conduta rigorosos para todos que trabalham sob suas marcas no mundo todo. A Deloitte não respondeu às perguntas feitas pela reportagem.

Editoria de Arte/Folhapress

ATUAÇÃO GLOBAL

As "4 grandes" têm operações mundiais. Ao todo, empregam mais de 700 mil pessoas e têm receitas anuais somadas acima de US$ 100 bilhões -mais do que o PIB do Equador.

As gigantes da contabilidade têm as suas raízes em alianças formadas no final do século 19 e início do século 20 por firmas norte-americanas e do Reino Unido. A manutenção de uma abordagem anglo-americana e sua presença global é reflexo da dominância dos principais mercados financeiros do planeta, Wall Street e Londres.

Batalhas legais na última década levantam dúvidas sobre se os governos enxergam as maiores empresas de consultoria e auditoria como se fossem os grandes bancos, que sempre são citados como "muito grandes para irem à falência". Essa política tácita em relação às consultorias, dizem militantes de campanhas anticorrupção, tem desencorajado reformas reais nas "4 grandes".

Colaboraram com o ICIJ (Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos) nesta reportagem MICHAEL HUDSON, SASHA CHAVKIN, BART MOS, STEFAN CANDEA e FERNANDO RODRIGUES

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