Folha de S. Paulo


A invasão do jornalismo corporativo

Uma população de 100 mil pessoas já não é garantia de que uma cidade como Richmond, Califórnia, possa sustentar um jornal diário próspero. Os leitores trocaram os prazeres tácteis do papel pela gratificação digital que as telas de seus smartphones oferecem, e as receitas publicitárias os acompanharam nessa transição. Publicações que no passado cobriam questões municipais, as vitórias esportivas das escolas da área e classificados para bicicletas supérfluas saíram de vez do mercado.

Em janeiro, porém, surgiu um site chamado Richmond Standard, prometendo uma "fonte de notícias diárias com foco na comunidade, dedicada a exibir as coisas positivas que acontecem na comunidade", e oferecendo a todos - dos empresários aos atletas locais - o reconhecimento que merecem. De lá para cá, o site destacou o "adolescente atento e esperto" elogiado pelo governador da Califórnia por salvar uma mulher de uma overdose; a "incrível força" de um aluno de primeiro ano de segundo grau com apenas 1,68 metro mas capaz de erguer "impressionantes 133 quilos" nos pesos; e o alerta do vereador Tom Butt sobre os custos de desocupação de um projeto decadente de habitação pública.

O Richmond Standard é um dos sites mais competentes a emergir na era de marcas digitais de notícias hiperlocais, como a Patch e DNAinfo.com. Isso pode ter acontecido porque ele é controlado e operado pela Chevron, grupo petroleiro de US$ 240 bilhões que controla a refinaria de Richmond - a qual sofreu um incêndio em agosto de 2012 que causou fortes nuvens de fumaça negra por sobre a cidade e levou mais de 15 mil moradores aos hospitais em busca de atendimento médico.

O editor, Mike Aldax, antigo repórter do "San Francisco Examiner", trabalha para um escritório de relações públicas chamado Singer Associates, que oferece conselhos sobre "administração de questões" a seus clientes. Em um momento no qual a Chevron planeja uma ampliação e reforma de US$ 1 bilhão na usina, combatida pelos ambientalistas, criar uma presença amistosa na comunidade pode parecer uma maneira atraente de administrar esse tipo de questão.

Em fevereiro, por exemplo, um artigo reassegurava aos leitores que "as nuvens que se via sobre a refinaria Chevron em Richmond na manhã de quarta-feira na realidade eram inofensivas nuvens de vapor". Outra reportagem destacava o trabalho voluntário dos operários da refinaria em um centro de adoção de animais. No começo de setembro, Aldax cobriu um protesto contra a Kinder Morgan, companhia de energia rival, por seus embarques de "xisto betuminoso de Bakken altamente volátil do Dakota do Norte", e lembrou os leitores sobre o mortífero descarrilamento de um trem carregando xisto de Bakken em Quebec.

O site - que declara abertamente sua intenção de "dar voz à Chevron Richmond nas questões cívicas" - inclui uma seção chamada "a Chevron fala", na qual a companhia contesta informações "incorretas e enganosas" veiculadas em publicações locais rivais, expondo seu argumento de que uma reforma na refinaria reduzirá a poluição e criará empregos. Quando o Richmond Standard questionou os elos entre a prefeita de Richmond e um escritório de relações públicas "suspeito de contratar falsos manifestantes para um protesto diante de uma assembleia de acionistas da Chevron", no entanto, o artigo foi classificado como notícia, e não opinião. Aldax escreveu que os elos entre a prefeita e o escritório de relações públicas "despertam novas questões sobre até onde ela está disposta a ir em sua batalha contra a Chevron", o maior contribuinte municipal em Richmond.
Ken Doctor, analista do setor de notícias que estuda "a distorção de limites" entre a notícia e o marketing, diz, sobre o site da Chevron Richmond, que "não há muita coisa que me espante, mas fazer o que eles fizeram é muito descarado". No entanto, os esforços da Chevron para produzir notícias em forma conveniente à companhia estão longe de ser únicos.

Richmond não é a primeira cidade industrial a contar com um jornal de empresa. Em 1909, foi lançado o "Hershey Press", em Hershey, Pensilvânia, com publicidade da fabricante de chocolates homônima e artigos sobre sua fábrica ("a melhor instalação industrial dos Estados Unidos"). Mas o primeiro editorial da publicação declarava que, na política, "defenderemos os candidatos honestos com todas as nossas forças, e deixaremos a vocês a decisão".

Pouca gente vive em cidades dominadas por uma só empresa, como Richmond ou Hershey, mas número cada vez maior de pessoas está exposto ao que seus proponentes definem como "jornalismo de marca" - uma nova forma de reportagem que, por acaso, é produzida por grandes empresas. E fica claro que deixar as coisas para que nós decidamos não está entre as prioridades de muitos desses veículos.

A mídia social e as ferramentas digitais de publicação permitem que essa corrente de notícias corporativas atinja vastas audiências, com profundas implicações para a maneira pela qual empresas se comunicam com o público e para os veículos tradicionais de mídia que as companhias estão aprendendo a contornar.

Por 20 anos, como repórter e editor em Londres e Nova York, a maior parte do meu tempo vem sendo dedicada às coisas que não jornalistas presumem que jornalistas façam o dia todo: cultivar fontes, buscar informações, estudar arquivos sigilosos e refinar meus textos. Mas também dediquei horas incontáveis a lidar com profissionais de relações públicas. Isso envolve telefonemas furiosos de protesto por eu não dar o destaque requerido à visão de mundo de um cliente, encaminhamento discreto de material favorável ao ponto de vista que o cliente deseje defender, e convites amistosos para almoços ou drinques nos quais os relações públicas expõem os pontos de vistas de seus clientes. (Em apenas duas ocasiões um profissional de relações públicas fez insinuações de teor mais pessoal à mesa, e nas duas pedi licença e fui embora.) E há também os e-mails de divulgação, que tentam me convencer a dedicar meu tempo e os recursos de reportagem do jornal a histórias de valor questionável para os leitores do "Financial Times".

Minha caixa de entrada de e-mail está lotada de "latidos de alegria" sobre o primeiro caminhão de comida para cachorros em Nova York, convites para uma conversa com o inventor de um cabide multimídia, o press release sobre um posto de gasolina "altamente inovador", e uma pesquisa sobre a "rede social lenta" (ou seja, cartões de festas). Há o jargão usual sobre "novos paradigmas", "fornecedores de sistemas pró-ativos de gestão de soluções" e sobre "conduzir os consumidores pelo funil do marketing", e há incontáveis mensagens de tentativa de contato enviadas por pessoas que não conheço e me tratam com familiaridade injustificada ("Ei, amigão!" era a saudação inicial de um e-mail recente), indagando se o que quer que estivessem divulgando poderia atender necessidades da "sucursal do 'Financial Times' em Nova York" - um destinatário escolhido ao acaso em uma lista.

Já que Woodward, Bernstein e o poder da imprensa para derrubar um presidente ainda pendem sobre a profissão, e que uma nova narrativa de análise baseada em dados brutos aponta para um futuro mais tecnológico no ramo, poucos jornalistas gostam de reconhecer o papel que os relações públicas desempenham em suas histórias. Muitos dos profissionais do ramo são bem informados, competentes, inteligentes, prestativos e divertidos. Alguns são ex-colegas. Alguns se tornam amigos. Mas, para a maioria dos jornalistas, esse é um tipo de envolvimento que aceitamos com cautela. Os relações públicas tentam extrair cobertura favorável, ocultar os fatos desfavoráveis e controlar o acesso dos repórteres às pessoas com quem eles desejam se comunicar.

Mas embora os jornalistas lastimem esses obstáculos impostos pelos relações públicas, raramente admitem um fato importante: os relações públicas estão vencendo. O emprego nas redações jornalísticas dos Estados Unidos caiu em um terço de 2006 para cá, de acordo com a Sociedade Americana de Editores de Notícias, mas o setor de relações públicas está em ascensão. A receita mundial do setor cresceu em 11% no ano passado, para quase US$ 12,5 bilhões, de acordo com um estudo setorial, "The Holmes Report". Para cada jornalista profissional empregado nos Estados Unidos existem hoje 4,6 relações públicas, de acordo com o Serviço de Estatísticas do Trabalho do governo federal norte-americano, ante 3,2 uma década atrás. E os jornalistas em geral ganham 65% do que seus colegas do setor de relações públicas faturam.

Enquanto as escolas de jornalismo despejam novas gerações de Woodwards e Bernsteins no mercado de trabalho, muitos daqueles que não conseguem emprego nas redações se voltam em lugar disso ao negócio de apresentar notícias à luz mais lisonjeira possível para o cliente. Eles contam com a companhia de repórteres, editores, produtores e apresentadores demitidos, profissionais com a competência requerida para contar as histórias que as marcas desejam contar sobre elas mesmas. "As agências [de relações públicas] agora empregam muitos antigos jornalistas", diz Steve Barrett, editor do boletim setorial "PR Week". "Há muitos refugiados espalhados por aí, jornalistas de primeira qualidade, realmente, que entraram para o mercado de relações públicas de modo bem específico".

Os esforços deles parecem estar dando resultado. Pesquisadores da Universidade de Cardiff estimaram em 2006 que 41% dos artigos da imprensa britânica eram propelidos pelo trabalho dos relações públicas. E agora, os profissionais do setor estão encarando o setor jornalístico no território deste, com reportagens bem produzidas, vídeos e recursos gráficos direcionados diretamente às audiências - muitas vezes produzidos com a ajuda das organizações jornalísticas que eles buscam subverter.

Nos dias anteriores à indicação de Satya Nadella como presidente-executivo da Microsoft, em fevereiro, notícias foram vazadas para importantes blogs de tecnologia com objetivo de mudar a discussão sobre a sucessão, da decepção quanto à perspectiva de um substituto vindo dos quadros internos da empresa para um senso de que era natural que a Microsoft optasse por promover um veterano que trabalhou por 22 anos ao lado de Bill Gates. Quando o anúncio surgiu, veio acompanhado da informação de que era exatamente esse o número de anos que Nadella estava casado.

Mas em companhia dos press releases convencionais veio um "pacote de recursos" que os relações públicas da Microsoft dispararam tanto para redações com um século de tradição quanto para blogs individuais. O pacote continha imagens em alta definição do novo presidente-executivo, com aparência relaxada mas competente, usando um agasalho com capuz ou cerrando o punho energicamente em uma palestra a funcionários. E incluía também uma biografia que o descrevia como torcedor de críquete e amante de poesia, que "emprestaria ao posto seu apetite inesgotável por inovação" - informações que serviram como base para as listas de "10 coisas que você não sabia sobre Satya Nadella" que terminaram publicadas nos dias seguintes.

E havia vídeos: depoimentos de Gates e de Steve Ballmer, o presidente-executivo que estava deixando o posto, sobre Nadella como sucessor ideal, e uma entrevista nada instigante conduzida por um blogueiro da Microsoft durante uma caminhada despretensiosa por uma área vazia da sede da empresa. O funcionário sorridente perguntava "como você se sentiu ao receber a proposta?", e o seu recém-indicado patrão respondia: "Honrado, humilde e empolgado". A primeira entrevista de Nadella como presidente-executivo da companhia terminava com a mais oportunista das perguntas: "Por que você acredita que a Microsoft terá sucesso?"

Foi uma aula de relações públicas, e as organizações noticiosas não viram escolha a não ser recortar e colar. Sem entrevista coletiva ou entrevistas individuais nas quais fazer perguntas mais incisivas sobre os desafios que a Microsoft terá de enfrentar, e sem chance de enviar fotógrafos ou operadores de câmera próprios, foi isso que os veículos fizeram. O "Financial Times" foi um dos jornais que incluiu um dos vídeos da Microsoft em sua reportagem online naquela semana (enfatizando que havia sido produzido pela companhia), e também postou um link para o blog de Nadella e analisou seu conteúdo, além de usar as fotos fornecidas pela companhia.

O "pacote de recursos" não fazia qualquer menção aos milhares de cortes de empregos na empresa, já planejados, que aconteceriam meses mais tarde.

A Burberry apresentou seu novo presidente-executivo, Christopher Bailey, com um vídeo igualmente bem produzido no qual ele era definido como "um dos maiores visionários dessa geração". (Como Nadella, ele disse que sua promoção o havia levado a sentir "incrível humildade".) E quando Bill Ford anunciou a sucessão presidencial na montadora de automóveis que leva o nome de sua família, de Alan Mulally para Mark Fields, em maio, ele ofereceu à mídia três vídeos sobre o evento com manchetes dignas de Pyongyang, a exemplo de "Mark Fields discute o poder da Ford Unida e de seus novos produtos".

A pressão sobre os veículos noticiosos para que se tornem multimídia, interativos e que funcionem 24 horas por dia, como máquinas de atração de leitores, significa que os editores se tornaram mais e mais receptivos às propostas dos relações públicas. A mídia está faminta, e as engole sem pensar muito. E com as instituições cada vez mais cautelosas diante de jornalistas imprevisíveis, os executivos agora se inclinam mais a revelar seus pensamentos em posts calculistas de mídia social do que em conversas com um repórter.

Sir Richard Branson, por exemplo, diz que ele costumava conversar primeiro com os jornais para difundir mensagens sobre seus negócios ou seus esforços filantrópicos. Mas agora o homem que serve como rosto para a Virgin tem mais de 1,5 milhão de seguidores no Facebook, 4,4 milhões de seguidores no Twitter e o total sem paralelo de 6,3 milhões de seguidores no LinkedIn. "Agora temos uma maneira de atingir as pessoas que leem o que dizemos, sem depender do 'Daily Mail'", ele observa.

Os presidentes de companhias vêm descobrindo que o conteúdo que postam na mídia social sem filtragem pela imprensa muitas vezes termina reproduzido por esta, diz Barrett. Assim, quando Mary Barra, a nova líder da General Motors, estava se preparando para depor diante do Congresso e explicar como a montadora havia ignorado alertas sobre o papel de um comutador de ignição defeituoso em colisões fatais de carros, ela gravou um vídeo emotivo no YouTube explicando de que forma, "como membro da família da GM e como mãe de uma família, isso realmente me afetou". O "New York Times" foi um dos veículos de imprensa que postou seu sóbrio vídeo como parte da cobertura online da questão.

Pouca gente teve tanto sucesso nesse tipo de ação quanto a Apple. Este mês, ao lançar o iPhone 6 e o Apple Watch em Cupertino, Califórnia, a companhia contava com a presença de milhares de jornalistas blogando ao vivo sobre o evento cuidadosamente roteirizado. E ela também estava operando um blog ao vivo, com imagens dos novos aparelhos, perfeitamente iluminadas, frases de executivos já formatadas como citações, tweets de celebridades elogiando os produtos, entre as quais Diddy e Katy Perry, e comentários absurdamente elogiosos - "até agora, tudo maravilhoso". Os lugares das primeiras filas estavam reservados a funcionários e convidados da Apple, que periodicamente aplaudiam de pé, diante das câmeras posicionadas por trás deles.

É um fato desconfortável para os jornalistas que uma empresa famosa por sua abordagem controladora quanto à mídia e sua ambição de ditar como sua história deve ser narrada tenha se tornado uma das mais bem sucedidas companhias do mundo - e em geral receba cobertura altamente positiva. A Apple não está sozinha: da Casa Branca a Wall Street, os jornalistas protestam por receber menos acesso que nunca aos detentores do poder.

"Hoje em dia, as pessoas não se incomodam muito sobre a origem de uma história, desde que ela lhes diga alguma coisa", disse Tomas Kellner, formado pela escola de jornalismo da Universidade Colúmbia, ex-repórter da "Forbes" e hoje editor do GE Reports.

O site online de notícias da General Electric evoluiu de uma lista de press releases para uma revista virtual que usa .gifs animados, fotografia profissional, vídeos e infográficos ("todos os diferentes pontos de entrada que usávamos na 'Forbes'", diz Kellner), e destaca histórias sobre inovação, ciência e tecnologia das diversas áreas do gigantesco conglomerado industrial. Muitas delas são envolventes e informativas, e algumas - como o artigo sobre uma plantação de alfaces dentro de um galpão no Japão, iluminada por 17,5 mil lâmpadas da GE - atraem até 500 mil leitores.

Kellner, que escreve a maioria das reportagens, se vê como seguidor de Kurt Vonnegut, romancista autor de "Matadouro Cinco", que nos anos 40 foi relações públicas da GE. Vonnegut foi um dos "primeiros coletores de conteúdo" da companhia, estudando suas operações para encontrar ideias e apresentá-las a jornalistas como propostas de reportagem, diz Kellner.

"Sempre houve redações noticiosas nas grandes empresas, mas o trabalho delas era publicar press releases que convencessem vocês, jornalistas, a cobrir alguma coisa", aponta Richard Edelman, cuja família é dona da maior agência mundial de relações públicas. "Agora elas mesmas publicam seu material. Essa é a grande diferença". Toda empresa agora percebe que pode ser também uma empresa de mídia, segundo ele.

O conteúdo autopublicado pelas companhias muitas vezes encontra espaço em blogs, jornais e boletins noticiosos, mesmo sem grandes esforços de divulgação. "Nosso trabalho aparece regularmente em blogs de tecnologia como o Gizmodo e o Endgadget", diz Kellner. "Isso valida o que estamos fazendo, em alguma medida". Para a vice-presidente mundial de programação digital da GE, porém, esses blogs de tecnologia também são concorrentes. "Nosso conteúdo tem de ser tão bom quanto o deles, se não melhor", disse Katrina Craigwell ao eMarketer em junho.

Em algumas áreas, os anunciantes estão tentando cobrir as lacunas deixadas pelo recuo da imprensa. O GE Reports lançou versões locais da Indonésia à Europa, diz Kellner, porque "em uma era na qual os jornais estão fechando sucursais internacionais e reduzindo sua cobertura internacional, estamos nos movendo na direção oposta e tentando contar uma história mundial, por sermos uma companhia mundial". De fato, Simon Sproule, ex-diretor de comunicações da Renault-Nissan e hoje porta-voz chefe da Tesla, fabricante de carros elétricos, disse ao "PR Week" que a Nissan abriu um centro de mídia em Yokohama em parte porque muitas organizações de notícias internacionais fecharam suas sucursais no Japão e "sentimos que nossas histórias não estavam sendo contadas". A moderna redação desse centro deixa no chinelo os estúdios de muitas estações de TV, diz Barrett.

A GE e a Nissan não são exemplos isolados. Sites como o Wells Fargo Stories; A Bullseye View, da Target; iQ, da Intel; e os guias para motoristas Secret Circuits, da Shell, para diferentes cidades, são todos exemplos bem produzidos de um gênero em crescimento. Boa parte do conteúdo parece bastante com o de uma revista. No site Journey, da Coca-Cola, artigos como "cinco dicas para entrevistas com a geração milênio", que parecem perfeitos para divulgação no Twitter, convivem com um artigo da decana dos programas de dicas domésticas, Martha Stewart, sobre como preparar uma "vaca preta" - uma mistura de Coca-Cola com sorvete de baunilha. Boa parte do conteúdo do site é mesmo produzido por ex-jornalistas, diz Ashley Brown, que criou o programa de marketing de conteúdo da Coca-Cola antes de se transferir à Spreadfast, uma empresa que se define como praticante do "marketing social". As marcas precisam contar histórias, diz ele, e jornalistas são os melhores contadores de histórias disponíveis. Na Coca-Cola, "queríamos pessoas que soubessem criar tensão e emoção com uma história e, mais importante, que soubessem como fazê-lo de modo rápido e eficiente".

Se as empresas forem capazes de produzir conteúdo suficientemente envolvente do ponto de vista emocional, bem como útil, ele diz, os fãs usarão a mídia social para difundir esse conteúdo. "Dizemos aos nossos clientes que o mundo precisa de mais conteúdo de boa qualidade", diz Brown. Mas as redes de TV e rádio e as revistas já não controlam a distribuição de boas histórias. Os consumidores individuais podem fazer esse trabalho em benefício das marcas.

A estratégia que embasa o marketing de conteúdo é semelhante ao raciocínio da Michelin ao produzir seu primeiro guia para motoristas, em 1900, ou da produtora de máquinas e veículos agrícolas John Deere ao criar uma revista para agricultores - "The Furrow" - em 1895, mas a escala é imensamente diferente. O "jornalismo de marca" ou "marketing de conteúdo" da Coca-Cola atraiu mais de 13 milhões de visitantes no ano passado.

Parte desse conteúdo não é tão transparente quanto às suas origens, e deve ser visto como campanha de lobby. Um site bem produzido, chamado Advanced Energy for Life, alerta sobre a ameaça da "pobreza energética", aplaude a Austrália por revogar seu imposto sobre as emissões de carbono e ressalta a importância do carvão para atender as necessidades energéticas do planeta, com itens multimídia como um vídeo de Jimmy Rose, astro do programa "America's Got Talent", cantando "Coal Keeps The Lights On" [o carvão mantém as luzes acesas]. Só as letrinhas miúdas informam que o site é patrocinado pela Peabody Coal, a maior mineradora privada de carvão do planeta.

Os anunciantes falam de "mídia paga" (publicidade que eles precisam comprar), "mídia conquistada" (cobertura de imprensa ou divulgação pessoa a pessoa) e de uma categoria em ascensão chamada "mídia controlada" (seus sites, blogs e contas de mídia social). O atrativo da "mídia controlada", por definição, é que as marcas nem precisam pagar um veículo de mídia para divulgar conteúdo e nem precisam conquistar a atenção da mídia e do público para conseguir divulgação. Isso é um problema tanto para o pessoal de vendas de publicidade quanto para o pessoal das redações, na mídia tradicional.

A pressão sobre os modelos de negócios do setor noticioso forçou inovação e, em redações mais modernas, como as do Buzzfeed, Mashable, Quartz e Vice, "publicidade nativa" se tornou o jargão do momento. Não existe grande consenso quanto à definição do termo, mas ele em geral significa que os anúncios pagos são muito parecidos com os artigos e vídeos em companhia dos quais eles são veiculados.

Essa variação digital da tradicional "matéria paga" foi definida como "um dos grandes eufemismos de nossa era" por John Skipper, presidente da ESPN, e foi alvo de zombaria do humorista John Oliver, mas conquistou algumas das marcas noticiosas mais estabelecidas, como o "New York Times" e a revista "Time".

Além de veicular "posts pagos" de anunciantes em sua home page, o "New York Times" também se veicula via publicidade nativa: no Mashable, você encontra "11 vídeos que restaurarão sua fé na humanidade", sob o rótulo "apresentados pelo 'New York Times'". Mais de três mil visitantes compartilharam o item na mídia social.

Alguns produtores de conteúdo noticioso foram ainda mais longe, entusiasticamente emprestando sua capacidade editorial para ajudar marcas a melhorar seu conteúdo. O "Wall Street Journal", por exemplo, diz aos anunciantes que é capaz de "empregar técnicas narrativas sofisticadas para ajudar marcas a criar conexões via conteúdo com suas audiências". Para alguns repórteres e editores, isso significa que agora a mídia se tornou cúmplice de sua demolição. No entanto, poucos leitores protestam.

Para Barrett, do "PR Week", isso está no coração do debate sobre classificar ou não o "jornalismo de marca" como jornalismo. "É ou não notícia? No fim, quem decide é o leitor", ele diz.

À medida que a distinção entre notícia e publicidade se dissipa, porém, analistas como Ken Doctor temem que nem todos os consumidores conseguirão distinguir entre os artigos de um veículo noticioso sobre a BP e os artigos da BP sobre ela mesma. "O stream do Facebook e o feed do Twitter introduziram uma entorpecente mesmice em todo o conteúdo de Internet", ele diz. Já existem críticos que duvidam de que jornalistas sejam capazes de reportar notícias imparcialmente, diz Doctor. "O setor de notícias não vem fazendo um bom trabalho em apontar o que torna o jornalismo diferente".

Para Edelman, que comanda a maior agência mundial de relações públicas, o desejo das marcas de colocar seu conteúdo ao lado da produção de jornalistas é sinal de que elas compreendem que o público confia mais nas histórias que a mídia conta do que nas histórias contadas por empresas. A pesquisa Trust Barometer, um levantamento anual conduzido por sua empresa, constatou este ano que 61% das pessoas pesquisadas em 25 países confiam na mídia tradicional, ante 43% que confiam na "mídia controlada".

Brown, da Spreadfast, acredita que os dois setores possam coexistir. "Sempre haverá necessidade de jornalistas que cubram o mundo de modo objetivo", ele diz. Além disso, aponta, a maneira mais segura de o conteúdo de marca ganhar destaque na mídia social é que seja coberto e compartilhado por veículos tradicionais de mídia.

À medida que decai a confiança nas empresas, o apelo de contar histórias que as humanizem se torna mais forte. O histórico das "matérias pagas" mostra que as marcas há muito desejam que sua publicidade leve jeito de notícia, mas como sujeitos da notícia elas querem cada vez mais decidir o que deve ser notícia e, à medida que ganham competência em fazê-lo, apresentam desafio mais e mais sério à narrativa jornalística tradicional.

É apropriado que o melhor resumo quanto a esse desafio esteja contido nas palavras de um novo concorrente digital, a GE: "Nosso conteúdo tem de ser no mínimo tão bom quanto o deles, se não melhor".

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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