Folha de S. Paulo


Após crise, setor calçadista mira o mercado interno e tenta se diversificar

Quando criou uma oficina de calçados no município gaúcho de Igrejinha, em 1955, Almiro Grings não poderia imaginar que sua Piccadilly, 59 anos depois, teria 31 lojas da sua marca em 10 países.

Resultado das profundas mudanças que marcam a história do setor calçadista no Brasil, a exportação de design e marca hoje domina a atuação dessas empresas no exterior. O peso das exportações no negócio e na balança comercial, porém, despencou nas últimas décadas.

A fabricante de sapatos femininos Piccadilly começou a exportar na década de 1970, por meio dos agentes de exportação que se instalaram na região do Vale dos Sinos (RS). Representantes de grandes indústrias e varejistas estrangeiros, os agentes traziam a modelagem de fora, e os fabricantes locais providenciavam a cópia.

Muitas empresas da região cresceram apoiadas no modelo do "calçado-commodity" e na política de incentivos às exportações da época.

"Quem começava a exportar acabava ficando só com o mercado externo, era mais rentável", conta Ricardo Wirth, diretor da Wirth, indústria de Dois Irmãos (RS) que durante 20 anos produziu exclusivamente para exportação, de 1975 a 1995.

Na fase de ouro do setor, as receitas externas com calçados chegaram perto de US$ 2 bilhões -o Rio Grande do Sul respondia por 80% do total.

As indústrias incentivaram a formação de polos de produção no Vale dos Sinos, onde ainda é possível encontrar tudo para calçados: máquinas, curtumes, bordadeiras.

A fase próspera prosseguiu até o início da década de 1990, quando a China começou a ganhar espaço. A situação se agravou com a valorização cambial em 1994, após a implantação do Plano Real.

"O setor não conseguia mais negociar preço com seus clientes externos", diz Paulo Grings, filho de Almiro e atual presidente da Piccadilly.

Com a perda de competitividade do produto brasileiro, fabricantes fecharam as portas. "Mais de 120 desapareceram em todo país", diz Heitor Klein, presidente da Abicalçados (Associação Brasileira da Indústria de Calçados).

"O modelo que caracterizava a nossa exportação migrou para a China, e o mercado interno apareceu como alternativa", conta Eduardo Scheffer, diretor da fabricante das marcas West Coast (masculino) e Cravo e Canela (feminino), de Ivoti (RS).

Editoria de Arte/Folhapress

MERCADO INTERNO

A crise obrigou os sobreviventes a repensar o negócio. A saída foi vender sapatos para o consumidor brasileiro, mas, para conquistá-lo, era preciso desenvolver seu próprio produto e sua marca.

Entre o final dos anos 1990 e o início dos 2000, Piccadilly, West Coast e Wirth, entre outras indústrias do Vale dos Sinos, se dedicaram ao design e ao marketing, com foco no mercado interno.

Com o aumento da renda e do consumo no país, o mercado doméstico conseguiu compensar o espaço deixado pela demanda externa.

A exportação deixou de ser a razão do negócio e tornou-se um desdobramento. "Montamos uma equipe para abrir novos mercados, mas só aceitávamos exportar a mesma coleção desenvolvida para o mercado interno, com nossa marca e design", diz Grings.

O setor desistiu de competir com a China. "A nossa proposta era oferecer calçados confortáveis e com materiais nobres. Não pretendemos disputar grandes volumes", diz Wirth, filho do fundador da indústria de mesmo nome, especializada em mocassins.

NOVA ALTA

Com a ajuda do câmbio, entre 2000 e 2007 as receitas voltaram a subir. Mas a boa fase foi interrompida pela crise de 2008, que voltou a valorizar o real, tornando o calçado brasileiro menos competitivo no exterior.

"O nosso sapato ficou muito caro e os nossos clientes reduziram as compras", diz Micheline Grings, diretora de exportação da Piccadilly.

As poucas empresas que mantiveram o modelo voltado integralmente à exportação quebraram, na segunda grande crise do setor. Foi o caso da Reichert e da Schmidt Irmãos, tradicionais indústrias gaúchas que deixaram milhares de desempregados.

Quem não quebrou assistiu à forte queda nas exportações. Desde 2007, a receita do país com as vendas externas de calçados caiu 43%.

"O Brasil se tornou o coletor de pequenos pedidos do mundo. Podemos atender poucos pares, o que a China não faz", diz Scheffer.

Com uma produção quase "sob demanda", o país passou a exportar para 150 países -80 deles em pequenos volumes. Dos 25 produtos industrializados com maior peso nas exportações, só 2 não perderam mercados desde 2004: o calçado é um deles.

A Piccadilly, por exemplo, exporta para 90 nações. Em 10, tem lojas da sua marca. "Elas foram criadas por iniciativa de clientes, que nos pediram para identificar a nossa marca em suas lojas", diz a diretora de exportação.

Em três anos, ela prevê dobrar o número desse tipo de estabelecimento, para 60. No Brasil, a empresa não tem lojas da marca, pois não quer concorrer com seus clientes.

Hoje, cerca de 25% da produção da Piccadilly, de 10 milhões de pares por ano, é exportada. Em 2002, essa participação chegou a 35%. Mas a executiva parece satisfeita e otimista com o nicho de mercado que escolheu.

"O Brasil nunca vai conseguir competir com produção em massa e o custo de mão de obra da Ásia. Mas podemos, sim, ter algum espaço no mercado externo quando investimos em diferenciação."

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