Folha de S. Paulo


Brasil quer regra para dívida renegociada após caso argentino

A presidente Dilma Rousseff pretende dar apoio mais que retórico à Argentina em sua batalha contra o que os argentinos chamam de "fundos abutres".

Na recente reunião do Mercosul em Caracas, Dilma reiterou a Cristina Kirchner que levará à cúpula do G20 (novembro, na Austrália) proposta para regular a reestruturação das dívidas de governos, território hoje sem lei, conforme se verifica pelas idas e vindas da negociação argentina com os "abutres".

O governo brasileiro compra, com essa posição, a tese argentina de que não está havendo calote, porque a Argentina não deixou de pagar. Depositou em juízo uma quantia que o juiz norte-americano Thomas Griesa impediu que os credores (da dívida renegociada) retirassem.

É uma discussão técnica que acaba fugindo do essencial: não dá efetivamente para falar em segundo "default" argentino, 13 anos depois do aplicado em 2001, porque as condições de um e outro são completamente diferentes.

Para começar, em 2001 a Argentina deixou de pagar 100% de seus credores, aplicando um calote próximo dos US$ 100 bilhões, tido como o maior da história, pela simples e boa razão de que não tinha recursos para fazê-lo.

Não foi portanto uma decisão política ou ideológica, mas uma inevitabilidade.

Agora, não. A Argentina só se recusa a pagar uma pequena parcela da dívida restante (menos de 8% da original), em mãos dos "fundos abutres". Aí sim, há uma questão político-ideológica: Cristina Kirchner não acha decente que fundos que não são os portadores originais dos papéis argentinos se beneficiam de uma aposta.

LUCRO

Tais fundos compraram títulos dos credores originais, com imenso desconto, confiando que cobrariam o valor integral por decisão da Justiça norte-americana -exatamente por apostarem que dava para ter ganho de causa pela carência de legislação internacional a respeito de dívidas renegociadas.

É esse problema que Dilma pretende que o G20 encare.

O governo argentino diz que um dos fundos, o NML de Paul Singer, por exemplo, pagou em 2008 apenas US$ 48,7 milhões pelos títulos em default. Hoje, de acordo com a sentença do juiz Griesa teria direito a receber US$ 832 milhões -um lucro estratosférico de 1608% em seis anos.

Outra diferença essencial entre 2001 e 2014: ao dar o calote, a Argentina vinha de cinco anos de recessão (só em 2001 a economia retrocedeu 10,7%, nível de país em guerra). Agora, dá-se o oposto: desde a primeira renegociação da dívida, em 2005, até 2013, o país cresceu 61%, o que dá a significativa média anual de 6,7%.

Mude-se o foco para a política e as diferenças colossais continuam: imediatamente antes e imediatamente depois do calote de 2001, o país vivia um turbilhão institucional tão fantástico que chegou a trocar cinco vezes de presidente em seis semanas.

Agora, o sobrenome Kirchner (Néstor primeiro, Cristina agora) ocupa a Casa Rosada, sede do governo em Buenos Aires, desde 2003, sem interrupção e com apoio popular que levou a atual presidente a ser reeleita com 54% dos votos em 2011.

De lá para cá, é verdade, o apoio foi se esfarelando bastante, mas não há nada que se comparece à derrubada em série de presidentes.

Tudo somado, é razoável supor que os efeitos do novo calote, desta vez "seletivo", para usar a expressão da agência de avaliação de risco Standard and Poor's, serão igualmente diferentes.

Mas é claro que efeitos haverá, até porque o default seletivo incide sobre uma situação já complicada, com redução da atividade econômica, inflação alta, dólar instável. Só os mais encarniçados adversários da presidente, porém, chegam a imaginar uma calamidade como a que antecedeu e se seguiu ao calote de 13 anos atrás.


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