Folha de S. Paulo


Norberto Odebrecht aproveitou as privatizações e encarou escândalos

Norberto Odebrecht, que morreu neste sábado (19), aos 93 anos, por complicações cardíacas, herdou do pai uma empresa falida. Tinha 21 anos e um caminhão de dívidas.

A Emílio Odebrecht & Cia não resistira às mudanças provocadas pela Segunda Guerra Mundial, que trouxeram escassez e alta nos preços dos materiais de construção. Naquela época, cimento, ferro, louças –quase tudo era importado da Europa.

Era 1941. O patrimônio da firma tinha sido entregue aos bancos e havia obras para serem concluídas. Estudante de engenharia, Norberto passou a se dividir entre as aulas na Escola Politécnica da Universidade Federal da Bahia e as negociações com credores, trabalhadores, clientes.

Conseguiu se formar em 1943 e fez um pacto com banqueiros para pagamento das dívidas. Em 1944, fundou sua própria empresa, a Norberto Odebrecht, marco do império que hoje se espalha pelas áreas de construção civil, petroquímica, petróleo, gás, defesa, mineração, açúcar, álcool, serviços.

Nessa trajetória, o fundador ficou quase 50 anos à frente da companhia. Sempre muito próximo de governos, passou por crises políticas e econômicas, denúncias de corrupção, erros e acertos de gestão.

Tirou proveito do período de crescimento na ditadura e das privatizações na redemocratização. Com aquisições, entrou no clube dos empreiteiros pesados –os "barrageiros", que fizeram as grandes usinas no "milagre brasileiro". Rumou para o exterior quando as obras minguaram no país e diversificou os negócios.

A origem mais remota do grupo está ligada à imigração alemã. Em 1856, chegou a Santa Catarina (região de Blumenau), vindo da Pomerânia, Emil Odebrecht. Foi engenheiro agrimensor, topógrafo e cartógrafo. Atuou na Guerra do Paraguai, nas redes telegráficas e ferroviárias no Sul do país. Teve 15 filhos.

Um de seus netos, Emílio (que seria pai de Norberto), mudou-se para o Rio de Janeiro e tornou-se discípulo de um primo (Emílio Baungart), que foi pioneiro na introdução do concreto armado no Brasil.

Xando Pereira - 6.abr.2001/Folhapress
O empresário Norberto Odebrecht na sede da empresa, em Salvador; ele morreu neste sábado, aos 93 anos
O engenheiro e empresário Norberto Odebrecht na sede da empresa, em Salvador

Era início de século 20, e a então capital federal derrubava os casarões antigos, abria avenidas e erguia prédios. A companhia de concreto se expandia. Pela firma, Emílio Odebrecht foi encarregado de ir para o Recife acompanhar a construção da ponte Maurício de Nassau.

Foi quando a família descobriu o Nordeste. A economia canavieira experimentava enorme crescimento, e Odebrecht resolveu criar sua própria empresa. Mas o negócio do açúcar entrou em crise, e, em 1925, decidiu ir para a Bahia. Naquele momento da cíclica economia brasileira, era o cacau e o fumo que estavam em alta e dinamizavam investimentos.

Filho de Emílio, Norberto Odebrecht nasceu no Recife em 9 de dezembro de 1920. Foi para Salvador quando tinha pouco mais de cinco anos. A rigorosa educação germânica o levava a engraxar sapatos, arrumar cama, rachar lenha –para só depois ser autorizado a brincar.

Tinha aulas em casa. Primeiro, da mãe Hertha, recebeu a influência das ideias calvinistas. Ela estudara na Alemanha numa escola destinada a formar mulheres para o casamento. Depois, aprendeu com o pastor luterano Otto Arnold. Tudo sempre em alemão. Fazia exercícios de caligrafia seguindo o alfabeto gótico.

Só aos 12 anos, quando entrou no Ginásio Ipiranga, em Salvador, é que Norberto aprendeu o português. Relatou que sentiu um choque ao passar a conviver com os filhos da elite baiana: "Eles achavam que tinham vindo ao mundo para serem servidos e não para servir".

O pai o levou para as obras pela cidade. "Iniciei a vida profissional trabalhando sucessivamente como ferreiro, serralheiro, pedreiro, carpinteiro", contou. Assentava azulejos, usava a bigorna, produzia esquadrias.

Para ele, suas atividades não eram "brincadeiras do filho do patrão". "A mesada que recebia de meu pai era calculada com base nas horas trabalhadas, marcadas pelo mestre ao qual eu me achava subordinado", afirmou.

Com essa história, nos anos 1940, Norberto enfrentou a quebra do pai e começou a tratar da própria empresa. Três anos depois de sair do sufoco, caiu de cama por causa de paratifo. Ficou doente e imobilizado por 47 dias. "Eu tinha uma série de compromissos com os clientes e resolvi fazer a empresa coletiva", lembrou.

Das experiências de doença e de falência e da disciplinada formação que recebeu, Norberto extraiu as bases do que mais tarde batizou como a Tecnologia Empresarial Odebrecht, que prega a descentralização administrativa, o planejamento e parcerias.

Suas ideias resultaram em livros e foram sistematizadas em "Sobreviver, Crescer e Perpetuar" (1981). Uma de suas frases preferidas: "Aprendi que o tempo é o único recurso irrecuperável, e que não temos o direito de desperdiçar o nosso e o dos demais".

Defendeu a necessidade do reinvestimento e recusou receitas rápidas de enxugamento. Avesso a teses importadas sobre gestão, uma vez disse: "Todas as vezes em que me deixei influenciar por teorias, o resultado foi desastroso".

Um erro? "Resolvi [em 1949] investir numa tal de Ituberá Comércio e Indústria, uma indústria de madeira. Abri essa empresa em 1950 e, em 1954, fechei porque não entendia nada daquilo. Compreendi que tinha que ficar no que entendia. E só investir em outras áreas associado a especialistas no novo mercado", relatou.

Fazendo um oleoduto, Norberto se ligou à Petrobras já em 1953, ano da fundação da estatal. Em 1969, construiu o edifício-sede da estatal no Rio de Janeiro, obra que virou seu "cartão de visitas" para entrar com força no mercado do Sudeste. Depois, ergueu o Aeroporto do Galeão, a usina de Angra 1 (1973) e a ponte Colombo Salles em Florianópolis (1973).

"NORDESTINO MALCRIADO"

Por decisão de Ernesto Geisel, construiu também nos anos 1970 a Universidade do Estado da Guanabara (atual UFRJ). "Foi o presidente Geisel quem disse: Entregue isso àquele nordestino malcriado", lembrou. Odebrecht recebera o apelido por causa de uma discussão com o ditador a cerca de dados do prédio da Petrobras.

Com um trajeto diferente das grandes firmas que emergiram da construção de hidrelétricas, a empresa baiana ganhava o seu naco do "milagre econômico" da ditadura militar. A mudança rumo ao Sul foi provocada pela extinção da Sudene (Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste) e causou um choque para a companhia.

"Eu não podia concorrer com a Camargo Corrêa, com os barrageiros. O grande desafio era que essas obras eram de coordenação. No Galeão, por exemplo, tivemos 184 subempreiteiras para coordenar. Quando fomos para Angola, o choque [de cultura empresarial] foi muito menor do que quando viemos para o Sul", recordou Odebrecht.

As obras nas regiões mais ricas do país engordaram o caixa da empresa. Entre 1976 e 1977, o faturamento quase dobrou. O crescimento real do grupo foi de 212% no período de 1973 a 1977. Menor do que as oito maiores construtoras, declarou Norberto a senadores na CPI que investigou, em 1978, o acordo nuclear.

Parlamentares da oposição questionaram o fato de Odebrecht ter ganho, sem concorrência, as obras de Angra 2 e 3 –a empreiteira vencera a concorrência de Angra 1. O empresário negou favorecimento.

Enquanto a firma ganhava destaque no cenário nacional, Norberto seguia um figurino discreto e afastado de badalações. Morava num edifício sem ostentação em Salvador e dirigia o próprio carro. No guarda-roupa, folgados ternos brancos. No dedo, o clássico anel de engenheiro civil.

Mas não abria mão das férias anuais com a família. Tradicionalmente ia para a ilha de sua propriedade: a Kieppe, na baía de Camamu, no sul da Bahia. Lá, andava e corria.

Apesar de resultados positivos no Brasil, ele percebeu que o futuro era incerto para o mercado de obras pesadas. Os choques do petróleo mostraram limites para o modelo econômico alardeado pelo milagre. "Foi para tentar garantir o nível de faturamento que começamos a ir para o exterior", contou.

Participando de uma viagem a Moscou com o então ministro Delfim Netto, a Odebrecht conseguiu contratos em Angola e ampliou sua atuação fora do Brasil. No Brasil, a compra da "barrageira" CBPO, em 1980, deu importante impulso à companhia, que também incorporou a Tenenge (1986). A empresa entrara no grupo dos grandes conglomerados nacionais.

Nessa mesma época, Odebrecht fez uma série de aquisições na petroquímica (Poliolefinas, PPH e Unipar). Esse movimento ganhou depois maior intensidade com a privatização da Copene (2001) e resultou, em 2002, na criação da Braskem, a maior empresa de petroquímica da América Latina.

Nos anos 1990, a Odebrecht se enredou nos escândalos de corrupção descobertos a partir do processo de impeachment de Fernando Collor. A empresa contribuiu para o esquema do tesoureiro PC Farias e foi acusada de pagar propinas a funcionários públicos e políticos, manipulando concorrências e a gestão do orçamento.

O senador José Paulo Bisol, relator da CPI do Orçamento, chegou a dizer, em 1993, que a Odebrecht dirigia um cartel de corrupção das empreiteiras e que era um Estado paralelo e secreto. A companhia reagiu classificando as acusações como levianas, ignorantes, incompetentes e de má-fé. Enxergou no escândalo a ação de um complô corporativista e das estatais.

ARREPENDIMENTO

Nesse tempo, quando a empresa já era dirigida por seu filho Emílio, Norberto deu uma série de entrevistas em defesa dos negócios. À Folha, se disse arrependido em ter contribuído com Collor: "Se arrependimento matasse, teria ocorrido no Brasil uma hecatombe".

Declarou que a descentralização da empresa conferia autonomia aos seus gestores, que podiam dar apoio ao candidato que quisessem. À pergunta se algum funcionário tinha cometido irregularidades, respondeu:
"Se cometeu, é porque foi forçado por aquele que ele tem que satisfazer [o cliente, quase sempre o governo".

Com Yolanda Alves, com quem se casou aos 23 anos, Norberto teve cinco filhos: Emílio, Ilka, Martha, Eduardo e Norberto Júnior. Em 1998, deixou a presidência do conselho de administração do conglomerado também para o primogênito. Em 2008, foi a vez de o neto, Marcelo, filho de Emílio, assumir o comando da empresa familiar.

O patriarca passou a cuidar de suas fazendas de cacau e de projetos ambientais no sul da Bahia. Foi quando opinou sobre a crise que eclodira na economia mundial: "O capitalismo não democrático, esse capitalismo voraz que está aí, que hoje permite que carros sejam vendidos em 72 meses... Isso é uma falsidade, é a destruição de tudo. É o capitalismo que, não contente em derrubar os grandes, agora derruba os miseráveis. É o capitalismo nocivo".

E avaliou a sua trajetória: "Aprendi a entrar em crise e a sair de crise. Temos de transformar a crise numa oportunidade. É preciso ter mais coragem do que análise".


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