Folha de S. Paulo


Preços se estabilizaram 'nas nuvens', disse Lula no 1º aniversário do real

Em artigo escrito para a Folha no primeiro aniversário do Plano Real, em 1995, o então presidente do PT, Luiz Inácio Lula da Silva, afirmou que a medida havia levado os preços para as "nuvens" e criticou o uso político do plano.

No mesmo dia, o então ministro da Fazenda, Pedro Malan, considerou a implementação da nova moeda uma medida de êxito e clamou por reformas tributárias e previdenciárias.

Os dois textos foram publicados lado a lado em edição especial da Folha de 2 de julho de 1995. Leia abaixo a íntegra dos dois artigos.

Editoria de Arte/Folhapress

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Os dilemas do Real

Ao invés de distrair a opinião pública com propaganda para comemorar o aniversário do Real, o governo deveria gastar os recursos dos contribuintes para revelar os problemas que ameaçam o plano e que não está conseguindo solucionar. Para ver se, em conjunto com a sociedade, os partidos e os sindicatos, consegue salvaguardar a estabilidade sem mergulhar o país numa crise recessiva como aquela que assola o México e a Argentina, que também trilharam os caminhos tortuosos do ajuste neoliberal com âncora cambial.

O Real teve a vantagem de rememorar o quanto é bom viver numa economia com preços estáveis, onde se pode comparar o custo das mercadorias, sem aquela loucura de milhares de números que mudam e se multiplicam a cada dia. Porém, melhor ainda seria viver num país com preços baixos, onde a maioria da população tivesse recursos para adquiri-las.

O fato é que o Real colocou a economia brasileira entre as mais caras do mundo e os preços se estabilizaram nas nuvens, tornando muito alto o nosso custo de vida.

O governo não tem motivo de se vangloriar só porque a cesta básica caiu de R$ 106,00, na véspera do Real, para os R$ 101,00 de hoje, porque antes do plano ela custava somente R$ 80,00. Não vejo razão para comemorar um salário mínimo de R$ 100,00 quando o aluguel de um apartamentozinho de dois quartos na periferia custa R$ 300,00 por mês, e uma refeição frugal, num restaurante modesto, não fica por menos de R$ 10,00.

Por enquanto, essa alta de preços generalizada, que foi causada pelo próprio Real, ainda não exerceu seu impacto, graças à euforia de consumo da primeira fase do plano, quando a economia se aqueceu devido à grande entrada de importados e de capital externo, à redução do imposto inflacionário e, particularmente, à expansão do crédito e queima de poupança.

Porém agora, quando vem a fase das vacas magras, quando o ``efeito tequila" afugentou parte dos capitais especulativos que inchavam nossas reservas, quando os consumidores atingem o limite de endividamento, a economia ameaça entrar em recessão e os preços altos irão pesar mais no bolso dos trabalhadores.

Em face das dificuldades para conter a alta de preços com a abertura comercial e o dólar barato, o governo apelou para o velho recurso de apertar o crédito ao consumidor e o capital de giro, que ficaram com os juros mais altos do planeta, da ordem de 12% a 15% ao mês. Conseguiu baixar a demanda e desaquecer as vendas.

Porém, ao custo de uma avalanche de títulos protestados e concordatas, como não se via nos últimos dez anos, superando as dos planos Collor e Cruzado 2. Conclusão: o governo teve de voltar atrás, diminuindo o compulsório dos bancos e permitindo o parcelamento dos débitos dos consumidores. Ao invés de promover a expansão da oferta, garantindo investimentos de longo prazo, com taxas de juros baixas, prefere asfixiar a demanda, reduzindo as atividades.

Para frear a festa dos importados, e consertar o rombo aberto em nossas contas externas, o governo teve de recuar na sua política de liberalização comercial, fazendo as primeiras desvalorizações do real e implantando restrições às importações, por meio de cotas ao setor automobilístico, que podem ser estendidas a outros setores.

Essa política errática do abre e fecha é contraproducente, mas é o preço a se pagar pela falta de uma política industrial definida, para nortear a abertura comercial, estabelecendo cotas de importação nos lugares certos, como faz a maioria dos países, e não ficar ao sabor das pressões de grupos de interesses. Dessa maneira, desorganiza a produção (pois há empresas que deixaram de investir aqui para importar) e desnorteia o mercado, que precisa de parâmetros sólidos de longo prazo para realizar seus investimentos com segurança.

Isso demonstra que a um ano de seu lançamento, o Real não está nada sólido e defronta-se com um sério dilema que ameaça justamente os seus alicerces. Se mantiver a âncora cambial por mais tempo e continuar com a abertura comercial que Washington prega para os outros países, mas não pratica, pode até manter a inflação sob controle ainda por algum tempo.

Porém, vai arrebentar a balança comercial, com o real sobrevalorizado (apesar das bandas) e as importações baratas, criando um déficit que, juntamente com as despesas com fretes, pagamentos de juros, remessas de lucros das empresas estrangeiras etc., vai consumindo as reservas, colocando-nos exatamente na situação do México do final do ano passado.

Por outro lado, se abre mão da âncora e faz uma desvalorização em regra do real, encarecendo as importações e estabelecendo cotas e outras barreiras ao ingresso indiscriminado de mercadorias importadas, perde seu principal instrumento de política antiinflacionária, diminui a concorrência externa e retira a ameaça que mantém alguns setores do empresariado sob controle.

Para enfrentar para valer a questão econômica e social, atacando diretamente a pobreza que assola o país, o governo deveria, antes de mais nada, desengavetar a reforma tributária e recolocá-la na ordem do dia; em segundo lugar, articular uma política negociada de preços, salários e tarifas públicas que liberasse a âncora cambial; em terceiro lugar, definir uma política industrial para estimular a produção, que possa orientar a abertura comercial, estabelecendo cotas onde forem necessárias, de modo a definir um horizonte estável para os investidores; e, finalmente, fomentar uma política de emprego, dando atenção especial à reforma agrária, que pode reter o homem no campo, e às micro e pequenas empresas, as grandes geradoras de emprego no país.

Sem sombra de dúvidas, do ponto de vista de Fernando Henrique Cardoso e de sua equipe de colaboradores mais próximos, o Real deve ser comemorado como um sucesso, porque abriu-lhes as portas do Palácio do Planalto. Mas não basta ganhar as eleições e usufruir das benesses do poder. É preciso, também, saber governar e cumprir as promessas de campanha, que serão cobradas pela população mais cedo ou mais tarde.

LUÍS INÁCIO LULA DA SILVA, 49, é presidente nacional do Partido dos Trabalhadores (cargo ocupado na data da publicação do artigo; hoje, Lula é ex-presidente).

Editoria de arte/Folhapress

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O primeiro aniversário do Plano Real

O Plano Real completou seu primeiro ano de existência. Trata-se, sem dúvida, do plano de estabilização mais bem-sucedido no Brasil.

A inflação no período imediatamente anterior ao lançamento do Real, ou seja, no final de junho do ano passado, caminhava rapidamente para o nível de 7.000% ao ano. No primeiro semestre de 1994, atingiu média mensal de 43%, acumulando 760%. Atualmente, ela está em torno de 2% ao mês, sendo que nos primeiros seis meses de 1995 a taxa acumulada pelo IPC-r foi da ordem de 10%, o menor percentual já registrado em igual período de tempo, em quase um quarto de século.

A estabilidade de preços tem profundo sentido social, ao retirar o peso do imposto inflacionário dos ombros daqueles que não podem dele se proteger, que são justamente os mais pobres.

O PIB brasileiro, por sua vez, cresceu 5,7% em 1994 e deverá apresentar crescimento não muito inferior àquele percentual em 1995. Uma expansão de tal magnitude é plenamente satisfatória tanto mais quando se leva em consideração que, segundo recentes estimativas, a economia mundial deverá crescer menos de 3% no ano em curso.

As políticas restritivas nos campos monetário e creditício, que, na realidade, vêm sendo implementadas desde o lançamento do Plano Real, visam tornar compatível a taxa de expansão interna do consumo com a estabilidade de preços e com uma situação adequada no balanço de pagamentos.

Um crescimento do PIB de 10,4%, como o verificado no primeiro trimestre deste ano, por exemplo, compromete o equilíbrio macroeconômico. Daí a necessidade da recente imposição de medidas restritivas adicionais, que, aliás, já começaram a ser flexibilizadas de maneira gradual, ante as evidências de arrefecimento da atividade econômica.

A política de bandas cambiais é a apropriada para o Plano Real, ao evitar uma supervalorização da moeda e ao criar, ao mesmo tempo, condições propícias para a estabilidade de preços. O fato de as exportações brasileiras estarem batendo recordes históricos neste primeiro semestre de 1995, somado à reduzida taxa de inflação atual, demonstra, claramente, o acerto da política adotada.

O recente ajuste nas bandas e a utilização de mecanismos de estímulo às exportações, aliados à diminuição da taxa de expansão do consumo e a medidas setoriais destinadas a conter um excessivo incremento conjuntural em importações, deverão permitir o retorno de superávits comerciais no decorrer do segundo semestre de 1995.

O maior desafio que temos pela frente é lograr a consolidação definitiva da estabilização. Para tanto, é essencial a modernização do setor público mediante, entre outros, a reforma dos sistemas tributário e de previdência social, o equilíbrio fiscal permanente, a implementação do programa de privatizações -que criará condições efetivas para a diminuição da dívida pública interna-, a desburocratização, a desregulamentação e a maior eficiência na gestão da coisa pública.

Muitos desses tópicos -e outros da agenda econômica do plano de governo, como a redução do custo da mão-de-obra, a continuidade do processo de integração de nossa economia à mundial e, em particular, à dos países do Mercosul e a participação do setor privado em investimentos em infra-estrutura- dependem de uma bem-sucedida reforma constitucional, cujo início, aliás, não poderia ter sido mais promissor.

O comportamento do Congresso sinaliza, claramente, a disposição do Poder Legislativo de dar sua fundamental contribuição para o sucesso do plano de estabilização e, em última análise, para a diminuição do custo de produção de bens e serviços no país, em relação ao dos nossos competidores no plano internacional. É a redução do ``custo Brasil" que possibilitará um ingresso crescente de investimentos diretos e nas tecnologias em nossa economia e um aumento expressivo nas nossas exportações de bens e serviços.

A administração Fernando Henrique Cardoso não medirá esforços para assegurar o êxito do Plano Real, que colocará o Brasil definitivamente no caminho da estabilidade, do crescimento econômico auto-sustentado e da justiça social e, ao mesmo tempo, permitirá ao nosso país uma inserção competitiva e dinâmica numa economia mundial globalizada.

PEDRO SAMPAIO MALAN, 51, é ministro de Estado da Fazenda (cargo ocupado na data da publicação do artigo; hoje, Malan é ex-ministro da Fazenda)


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