Folha de S. Paulo


Fiscais flagram trabalho degradante em cruzeiro; 11 tripulantes deixam navio

Uma força-tarefa formada por auditores fiscais, procuradores, policiais federais e representantes de oito órgãos resgatou um grupo de 11 trabalhadores sob suspeita de estarem em condições consideradas análogas à de escravidão em um navio de luxo da empresa MSC.

Outros dois trabalhadores identificados pela equipe como sujeitos a maus tratos optaram em continuar a bordo.

O resgate foi feito na última terça-feira (1º), quando o navio Magnifica parou no porto de Salvador, na Bahia, um dos pontos de parada antes de partir para a Europa.

O navio estava sendo monitorado desde janeiro, quando a fiscalização começou a receber queixas e denúncias de trabalhadores, que estavam sendo apuradas desde então.

Em março, a equipe fez a primeira ação fiscal no navio quando ele passou pelo porto de Santos. Tripulantes entrevistados e documentos apreendidos, segundo a fiscalização, comprovam jornada de trabalho exaustiva e contratação irregular desses trabalhadores.

Em nota, a MSC informa que está "em total conformidade com as normas de trabalho nacionais e internacionais e está pronta para colaborar com as autoridades competentes". A companhia informa ainda que "repudia as alegações feitas pelo Ministério do Trabalho e Emprego, do qual não recebeu nenhuma prova ou qualquer auto de infração".

JORNADAS EXAUSTIVAS

O principal argumento para caracterizar trabalho análogo ao de escravo foram as jornadas consideradas exaustivas que os tripulantes faziam de 14 a 16 horas, quando o contrato de trabalho a que estão submetidos prevê 11 horas, com intervalos, segundo documentos apreendidos na operação e relatos dos trabalhadores.

Trabalho análogo ao de escravo é aquele em que a pessoa é submetida a condições degradantes, como servidão por dívida (trabalhador tema liberdade cerceada por dívida com o empregador), riscos no ambiente de trabalho e jornadas exaustivas (acima de 12 horas, como prevê a lei).

"O fato de haver um contrato, mesmo que seja internacional, não permite o descumprimento de direitos humanos básicos. Temos documentos que provam irregularidades e fraudes na alteração das jornadas no cartão de ponto", diz Alexandre Lyra, chefe da divisão de fiscalização da erradicação do trabalho escravo do MTE.

Segundo documentos obtidos na operação, um dos 11 tripulantes resgatados trabalhava há 200 dias sem retirar uma folga de 24 horas.

Para a fiscalização do MTE, como os tripulantes são recrutados no Brasil e cumprem a maior parte do trabalho na costa brasileira deveriam ser contratados sob as regras da legislação trabalhista brasileira. Um termo de ajustamento de conduta foi assinado em 2010, criando regras para o trabalho em navios.

A Folha apurou que a maior parte das empresas foi autuada nas últimas duas temporadas por descumprirem o acordo firmado.

Pela CLT, a jornada diária deve ser de oito horas com, no máximo, duas horas extras por dia; é preciso haver um intervalo entre um dia e outro de trabalho de ao menos 11 horas.

ASSÉDIO MORAL

Os depoimentos dos resgatados também indicam situações que caracterizam assédio moral –cobranças excessivas, pressão no desempenho da função e humilhações constantes– e assédio sexual, segundo informa a fiscalização do MTE que prepara cerca de dez autos de infração para a companhia.

Os casos de assédio são mantidos sob sigilo para não atrapalhar o andamento das investigações. Um inquérito foi aberto também pela Polícia Federal em Santos para apurar as denúncias.

"Cheguei a trabalhar 20 horas em Santos, sem poder almoçar. Assisti colegas sendo humilhados pelos superiores além de chefes tratando as brasileiras como se fossem garotas de programa. Nunca mais quero trabalhar em um navio", diz Anderson Matsuura, 33, que trabalhava desde dezembro no navio Magnífica e está na lista dos resgatados.

Ele e a mulher, Leticia da Silva Kuwamoto, que também trabalhava no navio, decidiram pedir a rescisão indireta do contrato de trabalho - é como se o empregado pedisse a demissão do patrão por não cumprimento do contrato. O casal estava respectivamente há 106 dias e 112 dias, sem retirar uma folga de 24 horas, segundo relataram.

De acordo com os fiscais, a empresa pagou os dias trabalhados e não reconheceu a situação de resgate nem pagou as verbas rescisórias. Somadas, essas verbas chegam a R$ 400 mil.

"Esse caso é o primeiro de resgate nessa atividade marítima. As denúncias chegam todos os anos e o setor terá de se adequar. Desde 2006, acompanhamos de perto a questão. Foram seis navios fiscalizados neste ano. O caso mais grave é o do Magnifica", diz Raul Brasil, chefe da divisão de fiscalização de trabalho portuário e aquaviário do MTE.

O procurador Rafael Garcia, do MPT da Bahia, afirmou à Folha que "a empresa impõe aos tripulantes uma anarquia jurídica". "Age age infringindo o tratado internacional, a Constituição Brasileira e a Consolidação das Leis do Trabalho."

Ainda segundo o procurador os empregados trabalhavam até 16 horas "em horários fracionados e sofriam todo tipo de pressão e maus tratos a bordo". O MPT estuda medidas jurídicas para acionar a empresa, segundo Garcia.

OUTRO LADO

A MSC informa, por meio de nota, que, durante a temporada 2013 -2014, seus quatro navios que estiveram no Brasil, passaram por "intensas e repetitivas inspeções" por parte do Ministério do Trabalho e Emprego.

De acordo com a companhia, os navios da MSC Crociere, que operam em águas brasileiras empregam um total de 4.181 tripulantes, dos quais 1.243 são brasileiros.

"Após análises detalhadas de milhares de folhas de documentação e conduzindo centenas de entrevistas com tripulantes, no dia 1 de abril de 2014 o Ministério do Trabalho e Emprego esteve a bordo do MSC Magnifica e alegou irregularidades na jornada de trabalho de 13 tripulantes brasileiros, solicitando-os a desembarcar. Destes, 11 aceitaram desembarcar, mas 2 se recusaram e decidiram continuar trabalhando a bordo."

A Abremar, entidade que representa as empresas do setor de cruzeiros marítimos, informou que "todas as companhias marítimas seguem as orientações e exigências do Ministério do Trabalho, obedecendo a procedimentos e normas das leis trabalhistas locais."

No caso de tripulação brasileira a bordo dos navios, a Abremar explica que o contrato tem "carga dividida em turnos, com horários de descanso e folgas preestabelecidos". Ainda de acordo com a associação, o TAC (Termo de Ajustamento de Conduta) é cumprido "rigorosamente" pelo setor.

EM DISCUSSÃO

Desde o final do ano passado, trabalhadores e vítimas de cruzeiros participaram de debates e audiências no Senado para discutir a criação de regras no setor que garantam o cumprimento de direitos humanos e trabalhistas.

"Há inúmeros casos em andamento no país, ações na Justiça e denúncias de maus tratos. A situação atual dos brasileiros, de exploração no trabalho, pode ser considerada como a de um escravo", diz Alexandre Frasson, integrante da OVC, organização que representa vítimas de cruzeiros.

Ele informa ter encaminhado um relatório a vários ministérios e secretarias do governo federal mostrando "a vitimização de jovens provocada pelo submundo do trabalho em navios de cruzeiros, os quais caracterizei como tráfico humano, trabalho escravo e com intensa atividade do tráfico de drogas."

*

O TRABALHO EM ALTO-MAR
Setor de cruzeiros está sob fiscalização há oito anos após tripulantes relatarem maus-tratos

2006
- A resolução número 71 do Conselho Nacional de Imigração, do Ministério do Trabalho, determinou que navios estrangeiros que permanecem na costa brasileira por mais de 30 dias são obrigados a contratar 25 % de brasileiros entre os tripulantes

2007/2008
- Parte da tripulação brasileira contratada para trabalhar somente na temporada brasileira (5 meses) seguia contrato nacional de trabalho (com base na CLT) e o restante seguia contrato internacional com duração de 9 meses, como permitia esse acordo

2008/2009
- Brasileiros começam a relatar aos fiscais maus-tratos e, segundo documentos a que a Folha teve acesso, tripulantes diziam ser "perseguidos" quando os navios deixavam o país

- Empresas do setor começam a ser autuadas com base no artigo 444 da CLT e na Convenção 147 da OIT ( Organização Internacional do Trabalho), que garantem normas mínimas de proteção no setor marítimo e que a fiscalização atue sempre que houver necessidade, mesmo em contratos de trabalho feito livremente entre as partes interessadas

2009/2010
- A maioria das empresas passam a contratar brasileiros somente com contrato internacional, segundo a fiscalização do MTE

- Após ações de inspeção, um caso extremo de maus-tratos em um navio da MSC é investigado e denunciado à OIT

- Os nomes dos envolvidos não foram divulgados

2010/2011
Empresas de cruzeiros firmam um TAC (termo de ajustamento de conduta) com o Ministério Público do Trabalho para garantir alguns direitos da CLT aos tripulantes brasileiros com contrato internacional

2011/2012
Uma tripulante morre em Santos a bordo de um navio da empresa. Relatório de fiscalização do MTE caracteriza morte como acidente fatal em decorrência do trabalho

- A Secretaria de Inspeção do Trabalho do MTE sugere mudanças na resolução 71 que criava regras para o setor, obrigando a contratação pela CLT durante a temporada brasileira

- Empresas do setor são autuadas por descumprirem o TAC

2012/2013
- Pelo segundo ano consecutivo, empresas do setor de cruzeiros são autuadas por descumprirem TAC em diversos navios

- Fiscais multam empresas e autos de infração são feitos por discriminação e fraude na contratação

- Brasileiros são contratados por 9 meses no início da temporada brasileira e antes do final desse período sofrem pressão no trabalho e são, segundo laudos feitos com depoimentos de trabalhadores, forçados a pedir demissão

2013
- Audiência pública no Congresso Nacional com Conatrae (Comissão Nacional de Combate ao Trabalho Escravo) expõe condições de trabalho e discute a legislação trabalhista o setor

Março de 2014
- Uma força-tarefa com fiscais, procuradores, juízes, policiais e representantes de oito órgãos faz operação no porto de Santos nos dias 15 e 16 de março em seis navios e verificam condições consideradas degradantes, como jornadas de trabalho de até 16 horas, irregularidades no registro da jornada, denúncias de assédio moral e sexual no ambiente de trabalho

Abril de 2014
- 11 trabalhadores são resgatados na passagem do navio Magnífica, da MSC, pelo porto de Salvador (BA)

- Fiscais caracterizam condições análogas a de escravidão por causa de jornadas exaustivas, com até 16 horas diárias, escala de trabalho irregulares


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