Folha de S. Paulo


Comprometimento do governo chinês com meio ambiente é recebido com descrença

Para aqueles que já tiveram de suportar a tóxica poluição do norte da China, muitas vezes é surpresa descobrir que as leis ambientais e a regulamentação de emissões de poluentes do país estão entre as mais severas do planeta.

Ao longo dos 10 últimos anos, os líderes chineses vêm insistindo em que limpar o meio ambiente devastado por décadas de crescimento sujo e movido a pesado consumo de energia é uma de suas prioridades dominantes.

Mas a cada ano a poluição se adensa e a destruição ecológica continua, e as autoridades em todos os níveis ignoram as leis e regulamentos ambientais, em suas jurisdições, em benefício do rápido crescimento do Produto Interno Bruto (PIB).

Melhorar o meio ambiente foi uma das muitas reformas anunciadas na noite de terça-feira, quando quase 400 dos mais poderosos dirigentes do Partido Comunista, que domina a China, encerraram uma das mais importantes reuniões em seu calendário político.

A promessa, expressa na linguagem empolada que caracteriza o partido, dificilmente inspirará confiança entre as pessoas que sofrem os efeitos da poluição nas grandes cidades chinesas.
"Para construir uma civilização ecológica devemos estabelecer uma civilização, instituições e sistemas ecológicos sistemáticos e integrados, e usar as instituições para proteger a ecologia e o meio ambiente", afirmava a declaração divulgada no final da terceira sessão do 18º Comitê Central do Partido Comunista chinês.

A despeito do uso de linguagem mais forte quanto à reforma da propriedade de terras e quanto às forças de mercado, os pronunciamentos do presidente Xi Jinping e de seus camaradas ao final da reunião foram recebidos por muita gente no sistema chinês com um cinismo que seria impensável alguns anos atrás.

"Essas reformas são como pequenos consertos em uma estrada muito velha", diz Zhang Ming, professor de política na Universidade Renmin, em Pequim. "Para resumir, elas envolvem apenas pequenos ajustes no nível administrativo, mas eles são bastante insignificantes e difíceis de sustentar".

O resultado mais notável da reunião não foi qualquer política ou reforma, mas a criação de duas entidades administrativas que concentram o poder sobre a economia e os poderosos serviços de segurança diretamente nas mãos de Xi.

Os dois poderosos novos conselhos são um reconhecimento implícito, pela liderança, de que o atual sistema chinês de governança já não é capaz de implementar medidas políticas ditadas de cima para baixo, na segunda maior economia mundial.

Em particular, o estabelecimento de um conselho de segurança nacional lembra uma decisão semelhante pelo imperador Yongzheng, da dinastia Qing, que criou um "escritório de segredos militares" (posteriormente conhecido em inglês como "grande conselho"), no século 18, a fim de reduzir a burocracia e impor suas políticas de forma mais direta.

"Tende a existir a impressão, fora da China, de que o país tem um sistema autoritário enxuto, e que todo mundo obedece imediatamente aos comandos da liderança, mas essa é uma visão bem pouco realista de como o país funciona", diz Kenneth Lieberthal, ex-diretor sênior para questões asiáticas do Conselho de Segurança Nacional norte-americano. "A realidade é que, sim, todo mundo obedece, mas não exatamente como a direção desejaria. O sistema ocasionalmente funciona de forma muito disciplinada e centralizada, mas isso é raro".

A contradição entre a excelente legislação ambiental do país e seus terríveis problemas de poluição oferece um claro exemplo.

Na semana passada, o conselho de Estado, o equivalente chinês de um gabinete, e o presidente Xi reiteraram, separadamente, seu compromisso de reduzir o excedente de capacidade de ampla gama de setores, da siderurgia ao cimento. Os líderes chineses vêm tentando reduzir a capacidade excedente desses setores desde 2004, mas eles continuaram a se expandir rapidamente, e em certos casos triplicaram sua capacidade de lá para cá.

O mesmo vale para a disparada nos preços dos imóveis. O governo vem tentando contê-la pelo menos desde 2007, mas o ritmo de aumento em lugar disso se intensificou.

Muitos dos objetivos mencionados ao final da reunião da terça-feira eram parte da agenda do governo há muitos anos, e foram incluídos no 11º 12º planos quinquenais chineses, publicados respectivamente em 2006 e 2011.

Reduzir a dependência da economia quanto ao investimento e avançar em direção a um modelo mais orientado a serviços, propelido pela inovação e baseado no consumo é uma meta central do governo há oito anos.

O crescimento do país continua a cair com relação ao ritmo de dois dígitos registrado nas três últimas décadas, e existe crescente pressão internacional sobre Pequim pelo reequilíbrio da economia chinesa, reduzindo a dependência quanto às exportações e o investimento, contendo o crescimento do crédito e liberalizando os serviços financeiros. Reformas cujo objetivo seria promover uma redistribuição de renda estão em discussão desde 2004, mas, depois de três décadas de políticas econômicas de mercado, a China, nominalmente comunista, continua a ser uma das mais desiguais sociedades do planeta.

A despeito de muita falação este ano sobre os planos de reforma do sistema fiscal e para reduzir a estrondosa disparidade de renda do país, nada de concreto aconteceu.
"Se você avaliar as metas amplas que o governo incluiu no 12º plano quinquenal, verá muita repetição ante as metas do 11º plano", diz Lieberthal. "Isso acontece porque muitos dos objetivos do 11º plano, como elevar o papel do consumo domiciliar, reduzir a desigualdade, melhorar a eficiência macroeconômica, e melhorar a eficiência energética, viram movimento na direção oposta à desejada".

Nos círculos da política chinesa, o governo do presidente Hu Jintao, entre 2002 e 2012, é hoje visto como uma "década perdida", devido à notável desconexão entre as metas políticas do Estado e os resultados concretos.

Ao estabelecer seu novo "grande conselho", Xi está tentando encontrar atalhos em um sistema que foi corroído por incentivos distorcidos e por corrupção descontrolada.
Para começar, as diretrizes políticas das autoridades centrais em Pequim são deliberadamente vagas, a fim de oferecer o máximo possível de autonomia aos funcionários que operam em economias locais, as quais vivem estágios de desenvolvimento muito diferentes.

"Cruzar o rio descobrindo onde estão as pedras" - ou seja, enfatizar o gradualismo e a experimentação política cautelosa - é a filosofia de governo muito bem sucedida que Deng Xiaoping adotou para colocar a China no caminho das reformas de mercado, ao final dos anos 70.

Com isso, Pequim estabelece um direcionamento geral e deixa aos escalões inferiores da burocracia a liberdade de experimentar e improvisar, de forma a permitir que uma política faça o mesmo sentido tanto em Xangai quanto na província de Hunan, uma área rural.

Dado o número imenso de diretrizes políticas que fluem das autoridades centrais, as autoridades locais se veem forçadas a definir prioridades.

Inevitavelmente, elas cuidarão primeiro das políticas que não acarretam risco de prejudicar suas carreiras ou que possam oferecer as mais lucrativas oportunidades a elas e seus familiares.
O governo pode dizer às autoridades regionais que deseja mais inovação, mais consumo e menos investimento, mas em suas avaliações anuais dos quadros locais do partido, 70% dos pontos são concedidos por elevar a produção e evitar inquietação ou escândalos embaraçosos nas jurisdições locais.

Poucos pontos são conferidos pela realização de objetivos prioritários do governo como a limpeza do meio ambiente, em parte também porque é difícil medir o sucesso desse tipo de iniciativa.

"A menos que vejamos uma mudança na maneira pela qual as autoridades são avaliadas para promoção, jamais teremos reformas sérias", diz Guo Weiqing, professor da Universidade Sun yat-sen. "Mas a liderança deixa claro que o crescimento rápido do PIB continua a ser prioridade, e isso me torna bastante pessimista".

O foco míope em crescimento do PIB ajuda a alimentar o investimento excessivo em todo o país, e também se alinha perfeitamente com os interesses corruptos de muitas autoridades.
Ao construir uma grande represa, estrada ou conjunto habitacional, um dirigente local pode criar empregos e ao mesmo tempo ganhar acesso a um grande pote de dinheiro que ele pode apropriar para uso próprio ou distribuir a amigos e familiares.

Um exemplo desse fenômeno surgiu quase uma década atrás, quando o governo central ordenou que centenas de grandes cidades construíssem instalações de tratamento de água a fim de enfrentar o crescimento problema de infiltração de esgotos não tratados nas vias aquáticas do país.

Quando o programa foi concluído e os inspetores do governo foram enviados de Pequim para avaliar as instalações, constataram que virtualmente todas haviam sido construídas no prazo e respeitavam as especificações estabelecidas. Mas um ano depois de prontas, apenas metade das unidades haviam sido acionadas.

"Vi fotos de canos de esgoto levando a uma usina de tratamento, e depois contornando-a e despejando os eflúvios diretamente em um rio", diz Lieberthal. "Construir a usina propiciou grande lucro às autoridades locais, mas colocá-la em funcionamento faria dela uma fonte de despesas. Exemplos como esse são encontrados vezes sem conta em toda a China".

Porque continua a ser um Estado autoritário e de partido único, a China e seus líderes ainda conseguem colocar imensos recursos em ação e impor disciplina severa quando isso é absolutamente necessário, mas fazê-lo reduz o capital político essencial do sistema.

O surto de síndrome respiratória aguda grave (SRAG), em 2003, oferece um claro exemplo do poder do sistema chinês, depois que Pequim decidiu que já não podia continuar encobrindo a potencial pandemia. Virtualmente todo o país foi mobilizado para conter a doença. Dentro de poucos meses, a meta foi atingida.

Excetuadas emergências nacionais, as autoridades locais sabem que existem apenas algumas poucas áreas facilmente mensuráveis de desempenho, além de um crescimento estelar do PIB, que desfrutam de amplo apoio entre os principais líderes do partido, e que é quanto a elas que a carreira de um líder provincial pode ser feita ou destruída.

A primeira é a "manutenção da estabilidade" - ou seja, sufocar rebeliões incipientes dos camponeses ou trabalhadores. Isso em geral é realizado por meio de uma combinação entre boa governança e um conjunto abrangente e rigoroso de serviços de segurança e vigilância.

A outra prioridade clara é a "política do um filho por casal", que é imposta com severidade ainda que seja altamente impopular e que possa se tornar a causa de um desastre econômico e demográfico futuro.

Excetuadas essas prioridades, é difícil identificar questões que sejam facilmente mensuráveis em base anual, com clara responsabilidade por implementação, e que a liderança tenha definido como terminais para as carreiras das autoridades locais que não as executem como esperado.

As questões prioritárias, coincidentemente, se enquadram com perfeição aos interesses das autoridades locais que dependem do poder, orçamentos, multas e oportunidades de corrupção que a implementação delas cria.

"O maior desafio para o partido é o fato de que todos os seus tradicionais métodos de governo deixaram de ser efetivos. O que eles precisam é de uma reforma de todo o sistema", diz Chen Min, antigo comentarista político de um grande jornal que terminou demitido pela franqueza de suas observações. "O problema é que a atual liderança não tem ideia de como consertar o sistema rapidamente e por isso se veem na situação de ver o fim do sistema caso o reformem ou ver o fim do sistema caso não o reformem".

GOLFE

A proliferação de luxuosas pistas de golfe na China oferece um dos mais notáveis exemplos da desconexão entre as políticas do governo e a maneira pela qual são implementadas, ou, nesse caso, não são. Em 2004, o governo central proibiu a construção de qualquer pista de golfe no país, em um esforço para economizar água, preservar terras aráveis e reduzir o número de agricultores que terminam expulsos de suas terras para permitir empreendimentos imobiliários.

A proibição é renovada regularmente, e em 2011 um funcionário importante do Ministério da Terra e Recursos Naturais declarou ao "Financial Times" que a construção de qualquer pista nova de golfe era completamente ilegal.

No entanto, desde que a proibição foi anunciada, o número de pistas de golfe na China mais que triplicou, de cerca de 170 em 2004 a 650 agora, de acordo com estimativas independentes do principal centro chinês de pesquisa do golfe, em Pequim.

A maioria das pistas construídas recentemente parece ter recorrido a frágeis disfarces para evitar escrutínio, se definindo como "clubes de campo" ou "clubes de saúde e entretenimento", e deixando a palavra "golfe" de fora nas placas que os identificam. O verdadeiro motivo para que essa violação das normas do governo persista é que os clubes são muitas vezes controlados e frequentados por funcionários dos governos locais chineses, ou por seus parentes e amigos.

Alguns governos locais chegam a usar fundos de Estado reservados à proteção ambiental, parques públicos ou cinturões ecológicos para construir pistas de golfe, ainda que elas desperdicem imenso volume de água, um bem precioso no país que sofre a maior escassez de água do planeta.

O golfe era completamente proibido na China até 1984, por ser um "esporte de ricos", mas retornou com força nas duas últimas décadas, especialmente como atividade que oferece contato social e oportunidades de negócios a autoridades locais e poderosos empresários.

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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