Folha de S. Paulo


Análise: Derrocada de Detroit fala aos brios dos americanos

A queda de Detroit assusta os americanos porque a cidade foi, no passado, o ápice da criatividade cultural, industrial e tecnológica do país.

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Ela tem arranha-céus brilhantes, museus de primeira e panoramas sensacionais em sua zona de frente para o lago, além de uma ponte para o Canadá que ainda é a mais utilizada por caminhões que levam cargas por terra entre os dois países. É conhecida como Motor Town por seu setor automotivo histórico, mas também como Motown, como a gravadora que converteu a "black music" de um nicho em uma sensação internacional.

Sua população chegava a quase 2 milhões nos anos 50, quando Detroit era uma das cinco maiores cidades americanas.

Seus sindicatos eram fortes o suficiente para obrigarem suas icônicas montadoras a compartilhar as benesses financeiras de meados do século 20 com seus empregados e com a cidade, garantindo benefícios justos para os profissionais que trabalhavam em um lugar próspero, onde os cofres da Receita transbordavam.

E então tudo saiu dos trilhos.

Os americanos negros enxergavam Detroit como refúgio natural do repressivo sul do país --afinal, foi o lugar que elevou Diana Ross e Smokey Robinson ao estrelato--, mas, mesmo assim, os nortistas brancos não queriam ser seus vizinhos.

Os brancos deixaram a cidade em debandada, num padrão que se intensificou de modo drástico após o movimento pelos direitos civis, no final dos anos 1960. Esse pecado --o desafio do racismo vem sendo uma maldição dos Estados Unidos desde os tempos coloniais-- deu início à decadência de Detroit.

Hoje a cidade tem cerca de 700 mil habitantes, dos quais mais ou menos 10% são brancos.

Em seguida, os ventos da economia global moderna mudaram de rumo e levaram embora da cidade milhares de empregos no setor manufatureiro. O governo local, que poderia ter tomado nota da tendência e procurado diversificar a economia, estava atolado em corrupção. (Um prefeito recente deve cumprir mais de 20 anos de prisão, depois de ser condenado por aceitar subornos e outros atos de prevaricação.)

Quando a Grande Recessão chegou, em 2008, restava pouco ao qual se segurar em Detroit. Os imóveis perderam seu valor por completo, o desemprego subiu vertiginosamente, e as pessoas com educação e os recursos para isso se mudaram para os subúrbios ou para lugares completamente diferentes. Mas Detroit continua arcada sob o peso das dívidas com os donos de títulos de dívida da cidade e ainda tem milhares de aposentados e futuros aposentados que contam com suas pensões prometidas.

O que vai acontecer agora, então?

Espera-se que o processo de falência ajude a cidade a colocar suas finanças em alguma espécie de ordem. Os aposentados serão obrigados, com muita angústia, a rever seu futuro. Políticos, executivos do setor automobilístico e celebridades famosas naturais de Detroit, como Eminem e Madonna, farão discursos sobre trabalhar em conjunto, reconstruir, recapturar a glória. Serão necessárias injeções de recursos estaduais e federais, sem dúvida.

Mas Detroit poderá voltar a ser o que era?

Não. Não nesta geração, em todo caso. Diferentemente da União Europeia, cuja própria moeda e viabilidade dependem de todos seus membros serem solventes, a falência de Detroit tem muito pouco impacto prático sobre as cidades vizinhas. A poucos quilômetros de distância das divisas da cidade, há bairros com casas de milhões de dólares e gramados perfeitos.

Detroit está atolada num ciclo vicioso que não poderá ser interrompido, mesmo que suas dívidas sejam totalmente saldadas: as pessoas não querem morar ali. A cidade não é capaz de prestar os serviços básicos que os americanos exigem -- demora da polícia em responder a pedidos de ajuda é chocante, devido à falta de contingente--, e por isso a maioria das pessoas que tem condições econômicas para mudar-se para outro lugar o fará.

Sem pessoas vivendo na cidade, pagando impostos prediais e construindo uma comunidade, há pouca esperança de que Detroit algum dia consiga oferecer mais.

É difícil imaginar o que poderá mudar, mas outras cidades americanas estão tentando aprender lições. Lugares como Las Vegas, que, como Detroit, possui apenas uma atividade econômica, estão trabalhando febrilmente para diversificar sua economia e sua base tributária, e, ao mesmo tempo, evitar fazer promessas excessivamente generosas a aposentados futuros.

Se esses lugares puderem empreender rumos melhores graças ao que vêem acontecendo em Detroit, então talvez o motor da Motor City não terá morrido por nada.

STEVE FRIESS é jornalista freelancer residente em Superior Township, um subúrbio de Detroit

Tradução de CLARA ALLAIN


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