Folha de S. Paulo


Herdeiro de Hilda Hilst conta como foi passar infância junto à escritora

Sala de Memória Casa do Sol - Acervo Instituto Hilda Hilst/J.L. Mora Fuentes
Hilda Hilst entre Daniel Fuentes e sua mãe, a artista plástica Olga Bilenky

Antes do meu nascimento, minha vida já estava ligada à história de Hilda Hilst e da Casa do Sol, que se tornou tão importante no universo recente da cultura nacional.

Meu pai se tornou grande amigo de Hilda e em 1968 decidiu se mudar para a casa. Ele talvez tenha sido o seu grande interlocutor: ambos se diziam "irmãos de alma". Minha mãe também foi morar lá de forma quase contínua de 1975 até pouco antes de eu nascer.

Nasci em São Paulo, mas fui gerado na Casa do Sol.

A casa, assim como Hilda, sempre esteve na minha vida. Juntas ocuparam o espaço da família —não sanguínea, mas eletiva. Uma vez, pesquisando nos acervos, descobri que, quando eu tinha poucos dias de vida, Hilda veio me conhecer na casa dos meus pais, em Perdizes. Pouco depois, em 3/11/1983, retribuí a visita, entrando na Casa do Sol pela primeira vez.

Na infância, passei ali incontáveis férias, feriados e fins de semana; praticamente todos os Natais e Anos-Novos foram lá. Não são poucas as memórias —quase sempre felizes— que tenho desses anos.

Minha liberdade nos jardins da casa, entre os jasmim-mangas, a figueira e os antigos canis, era total —desde que não exagerasse no barulho perto do escritório de Hilda.

Há também outra parte das memórias: as do "mundo dos adultos" —e aí Hilda era completamente presente. Quase diariamente, no meio da tarde, a rotina de trabalho de todos era interrompida por visitas ao seu escritório para papos variados, mas muito ao redor do que se lia ou produzia na casa.

Lembro-me de passar longos períodos ouvindo conversas no escritório dela. Comentavam-se matérias de jornal ou liam-se trechos recém-escritos. Eu ouvia muito, mas também era enxerido o suficiente para falar e ter opinião. Esses momentos eram sempre regados a muito humor, pois os tempos na casa transbordavam risadas e brincadeiras.

Eram divertidos até para mim. A verdade é que Hilda nunca soube muito bem o que era uma criança —ou "crionça", como gostava de dizer. Sua relação comigo era como se tratasse com outro adulto.

Lembro que uma vez, ao redor dos oito anos de idade, talvez até um pouco menos, estava brincando com meu amigo Bruno nos canis do fundo da casa e, no meio de uma luta contra um dragão gigantesco —na realidade, um antigo flamboyant—, acabamos por apedrejar as janelas do vizinho, sem intenção.

Foi uma ilha de molecagem que não deveria gerar maiores repercussões além de uma bronca de meus pais, mas Hilda ficou muito assustada e começou a pensar que talvez eu e meu amigo fôssemos algum tipo de pré-psicopatas e que aquelas duas ou três janelas quebradas poderiam ser um sinal disso.

A discussão foi longe e só parou quando uma psicóloga especialista em infância —que, por sorte, visitou a casa por outros motivos nos dias seguintes à "tragédia"— nos absolveu, evitando maiores discussões entre Hilda e meus pais.

Tirando esse hiato de tensão, minhas memórias com ela são todas no registro do carinho. Acho que ninguém me deu tantos presentes na vida. Bastava ficar sabendo que eu me interessava por um assunto que, no dia seguinte, chegavam para mim diversos livros a respeito.

Teve a fase dos dinossauros e a das mitologias. Lembro-me de um dicionário lindamente ilustrado sobre lobos mitológicos que me deu de presente e que por muitos anos foi meu preferido —até hoje integra minha biblioteca.

Mas não eram apenas os presentes: o dia a dia na Casa do Sol era muito vivo e feliz. Hoje reconheço esse humor em toda a obra de Hilda, mas especialmente nas crônicas que escrevia para o jornal campineiro "Correio Popular". Sou quase capaz de ouvir em minha cabeça as gargalhadas que a leitura desses artigos despertavam naquela época, em longos chás da tarde no pátio interno da casa.

Tenho para mim que a obra de Hilda Hilst foi produzida muito "em voz alta" e que vive, até hoje, tão presente no teatro por conta disso: sua potência se amplia quando interpretada com eloquência e com o ritmo da respiração marcando suas pausas.

Hoje, me surpreendo com essa corporalidade de sua linguagem e encontro nela uma referência importante ao caminho criativo de Hilda no processo que testemunhei enquanto criança —ainda que na época eu estivesse mais interessado em me divertir pelo jardim.

*

DANIEL FUENTES, 34, sociólogo, é presidente do Instituto Hilda Hilst.


Endereço da página:

Links no texto: