Em 1969, Paris estava em chamas. Depois das brasas reais de 1968, em que barricadas e uma greve geral pararam a cidade, o ano seguinte foi palco do surgimento da experimental Universidade de Vincennes, que tentava reformular a distribuição autocrática, elitista e concentracionária do saber na França.
Seu primeiro diretor, Michel Foucault, convocou um time de jovens notáveis que viriam compor esse novo horizonte intelectual: Alain Badiou, Jacques Rancière, Étienne Balibar e muitos outros, incluindo Judith Miller, a filha mais nova do psicanalista Jacques Lacan e da atriz Sylvia Bataille.
Nascida em 1941 e filósofa de formação, Judith se mostrou interessada em epistemologia e teoria política. Publicou estudos sobre a metafísica de Galileu e uma memorável entrevista com Pierre Klossowski, editor das obras de Sade.
Crítica do sistema universitário, ela ficou conhecida por suas declarações contundentes e pelo apoio à independência da Argélia, tendo inclusive militado na esquerda maoísta ao lado de seu marido, o psicanalista Jacques-Alain Miller.
Sua carreira universitária foi, contudo, breve. Ela termina por ser afastada de seu cargo na universidade de maneira fortuita. Certa vez, Judith encontra no ônibus uma aluna desconhecida, que lhe conta suas dificuldades para cumprir as demandas da universidade e, ao mesmo tempo, fazer frente às exigências do trabalho e da família.
Movida pela solidariedade, Judith concede a nota à estudante, gesto pelo qual as autoridades universitárias aproveitam para puni-la, interrompendo sua carreira como professora.
Depois disso, Judith passa a se dedicar à obra do pai, trabalhando com o movimento psicanalítico. Ela não se tornou psicanalista, mas ocupou a presidência da Fundação do Campo Freudiano desde sua fundação, em 1979, até sua morte. Ajudou, ainda, a formar redes de pesquisa sobre a psicanálise com crianças a partir do trabalho de Robert e Rosine Lefort.
Publicou um conhecido trabalho sobre a afirmação de Buffon de que "o estilo é o homem" e sua reinterpretação por Lacan. Além disso, editou o memorial fotográfico com as principais imagens, hoje fartamente circulantes, dos vários momentos da vida de Lacan.
Atenciosa e exigente, ela era figura constante no círculo mais íntimo dos discípulos de seu pai e nos encontros e projetos editoriais que ocorriam mundo afora em decorrência da disseminação do pensamento do psicanalista.
ACASO
Em 1998, fui apresentar um trabalho em um congresso em Madri. Na mesma época, aconteceria outro grande evento em Barcelona, reunindo lacanianos do mundo inteiro em frente ao histórico hotel Havana. O financiamento que recebi era muito curto, o que tornava impraticável pagar a inscrição desse outro encontro.
Por um desses acasos analíticos, estava com alguns amigos vagando pelas ramblas de Barcelona no dia da abertura do congresso, até que nos perdemos e fomos dar num parque, justamente no pavilhão que sediava o evento. Ficamos nas escadas vendo os craques entrarem em campo, tentando identificar as figuras que só conhecíamos de texto.
Foi quando passou na nossa frente, com ar apressado, Judith Miller, ela mesma, em pessoa. Movido por esse tipo de loucura brasiliensis, tentei explicar a ela o que havia acontecido: era um professor, membro de uma escola lacaniana e tinha chegado ali "meio por acaso", sem inscrição nem meios de fazê-la, até porque não havia mais vagas disponíveis. Dizia isso em uma mistura capenga de espanhol com francês, vestido em trajes de turista maltrapilho.
Para minha surpresa, sua face francesa tensa, agravada pela preocupação pré-congressual, deu lugar a um sorriso farto e benévolo. Ela escutou minha história e imediatamente abriu as portas para que eu entrasse, enquanto um amigo registrava a foto daquele momento improvável.
Esse congresso de 98 marcou uma dissensão entre as escolas lacanianas, com consequências que perduram até hoje. As disputas ali ocorridas mudaram o sentido teórico e pessoal de muitas pessoas.
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Vinte anos depois, agora que Judith nos deixou, vítima de uma dolorosa doença degenerativa, não pude deixar de sentir de novo aquela extrema gratidão pelo gesto imprevisto e contingente.
Lendo a biografia de Lacan e textos sobre aquele período, descobri que talvez isso fosse um traço do jeito dela: abrir-se para um qualquer, que talvez esteja desolado em um ônibus, refugiado de uma guerra colonial ou simplesmente perdido nas escadas de um congresso. Daquela vez, eu teria sido o anônimo para quem ela fez toda a diferença.
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CHRISTIAN DUNKER, 51, psicanalista, é professor do Instituto de Psicologia da USP e autor de "Reinvenção da Intimidade - Políticas do Sofrimento Cotidiano" (Ubu Editora).