Folha de S. Paulo


Palácio Real de Madri é o único a preservar cozinha do século 19

RESUMO Única brasileira presente na primeira visita oficial à cozinha do Palácio Real de Madri, a convite do governo, jornalista conta sobre o último local de culinária da realeza que preserva espaços originais em capitais europeias. A maioria do equipamento data do século 19. A escala e o profissionalismo da produção impressionam.

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Da ponta de uma caneta de pena, molhada em tinta preta, saíam registros manuscritos dos cardápios mais luxuosos já servidos no Palácio Real de Madri, preservados até hoje. Faisão, trufa, foie gras, peito de pato em finas fatias, filé de capão (os galos que, castrados, engordam mais), costeleta de cordeiro, creme de aspargos.

A tocar, "Ave Maria", clássica composição de Franz Schubert (1797-1828). Para beber, os celebrados vinhos Château Lafite e Château d'Yquem, há muito listados entre os mais nobres de Bourdeaux, a mais famosa e influente região vinícola do mundo.

Caso único entre os palácios reais das capitais da Europa, o espanhol preserva os espaços originais concebidos para a cozinha, com quase todo o seu equipamento primário, que em sua maioria data do século 19.

Fogões de pedra movidos a carvão; moldes de bombom com o emblema da flor de lis, símbolo da monarquia; panelões de cobre nos quais eram feitos doces em banho-maria —os mesmos recipientes que passaram a ser revestidos com prata depois da morte de uma comunidade inteira em Portugal por intoxicação pelos elementos fatais do cobre.

Do mesmo centenário vem seu modelo de cozinha —inspirado na França—, com dependências diversas, dedicadas às distintas tarefas necessárias para atender aos serviços da mesa palaciana: a área de confeitaria, a frutaria, a drogaria, a sala de lenha e de combustíveis, o espaço de serviço de mesa e preparo de infusões e refrescos, a ala das salsas e condimentos, a despensa, a sala de carnes e a de verduras e, finalmente, a cava, que abrigava as bebidas e onde era feito o controle da água, vinda da Fuente del Berro, a mais nobre de Madri à época, que passou a abastecer as famílias reais no século 17.

Havia, ainda, uma cozinha específica para o serviço voltado ao rei, que comia sozinho, observado por sua família e pela corte, convidadas a desfrutar a refeição em seguida, com louças e utensílios exclusivos, que seguem à mostra, marcados com brasão próprio.

Uma terceira cozinha —dedicada ao preparo das refeições para os serviçais que tinham direito de receber comida às custas da realeza— era usada para o reaproveitamento dos alimentos que sobravam das refeições reais, para que nada fosse desperdiçado.

Todas as cozinhas eram monitoradas por um porteiro, encarregado de vigiar a entrada e a saída de pessoas, objetos e produtos comestíveis.

No mesmo ambiente, o chef principal tinha à sua disposição uma mesa com telefone, para facilitar a liderança de toda a equipe —não se sabe, hoje, quantos integrantes havia, mas todos eram especializados em determinados ofícios, como explica Juan Ramón Aparicio, curador da cozinha palaciana de Madri.

QUENTE E FRIO

No palácio real, a caldeira utilizada no cozimento da comida também era útil para alimentar o sistema de calefação por ar em algumas salas do piso principal, remodeladas por Afonso 12 (1857-1885), como a sala de bilhar e a sala de fumar.

Em outra dependência, onde eram feitos os sorvetes, atrai o olhar um frigorífico elétrico construído entre 1902 e 1906 para armazenar doces, inteiro revestido de madeira, um deslumbre.

Na sequência, uma área coberta de azulejos brancos, com torneiras, dedicada à lavagem de legumes e demais vegetais que, em outras ocasiões, acomodava animais a serem dessangrados, depois de abatidos e recebidos inteiros na cozinha real.

Antes de encaminhá-los para a sala de cocção, aliás, havia uma mesa de corte para porcionar as carnes, antes destrinchada com o auxílio de um cepo de madeira maciça. Tudo isso reunido na antecozinha, também conhecida como sala de preparação, construída em 1930 para concentrar o pré-preparo dos alimentos.

Foi no reinado de Afonso 12, no período de 1874 a 1885, que a cozinha ganhou fogões de ferro fundido, muito sofisticados, movidos ao calor do carvão, com engrenagem subterrânea.

Na sala dos fogões, como era chamada, também está conservado um portentoso forno de assar carnes e um defumador enorme, vindo de Paris, no qual era preparada a predileção de Afonso 12, o rosbife. A carne ficava a girar em espetos enquanto era banhada pelo vapor gerado por brasas.

Ainda que a cozinha mantivesse altíssimas temperaturas, a comida tinha fama de chegar fria à mesa, pois era extenso o caminho que tinha de percorrer das dependências de serviço até a sala de refeição. A distância era para evitar a circulação de cheiro e reduzir os riscos de incêndio.

ESMERO

Uma outra sala, de pé-direito altíssimo, paredes espessas e piso de pedra, está silenciosa e imóvel como as demais.

Uma observação minuciosa é capaz de revelar uma aura encantadora do passado: ao centro, uma enorme mesa de álamo-negro sobre a qual eram feitos os doces; uma balança de época; os mais diversos moldes para chocolate e formas de bolo, dispostos de modo organizado nas prateleiras que abraçam o espaço e lhe dão um pouco de vida e um certo ar caloroso.

Ali também eram feitos os adornos usados para decorar as mesas: compotas, biscoitos, refrescos, sorvetes, chocolates e bebidas quentes.

Ficam à mostra, ainda, cestas de palha, outrora usadas nos piqueniques feitos no jardim, bandejas de estampas e tamanhos variados, pratarias, peças de cobre estanhado —algumas trazidas de Paris e outras espanholas dos séculos 18 e 19, trazidas de palácios como El Pardo e Aranjuez— e os aros usados desde o século 19 para empratar as receitas à perfeição.

Seguem resguardados acessórios usados pela realeza em viagens e caçadas, armazenados em arcas, dispostas na mesma sala onde estão conservadas as garrafas de vinho do palácio, cobertas de poeira. Nas paredes é que estão fixados os cardápios dos jantares oferecidos pela família real aos mais altos escalões do poder.

Tamanho cuidado e atenção com a culinária e a apresentação das refeições não era exclusividade da Espanha: o chef e confeiteiro francês Antonin Carême (1784-1833) ficou conhecido como "o rei dos cozinheiros e o cozinheiro dos reis".

Seu esmero e preciosismo o faziam passar horas debruçado sobre livros de arquitetura na biblioteca nacional de Paris, buscando inspiração estética para suas sobremesas extravagantes, que também serviam para decorar as mesas e cujo processo de confecção podia levar dias.

Foi sob o comando de Carême que ganharam forma os primeiros e mais simbólicos banquetes da realeza europeia no século 19.

Um deles foi servido na Place de la Concorde, em Paris, para 10 mil pessoas, com uma garrafa de vinho para cada convidado. Foram preparados seis bois inteiros, 75 vitelas, 250 carneiros, 2.000 frangos, 8.000 perus, 500 línguas e presuntos e mais de 2.000 carpas e perdizes —para se ater somente às carnes.

Quando o francês foi trabalhar no Reino Unido, no Royal Brighton Pavilion —à época, residência da família real britânica—, a cozinha foi reformada especialmente para recebê-lo. Foram colocados à sua disposição dois cômodos para massas, três para confeitaria e uma cozinha a vapor, como conta seu biógrafo, Ian Kelly.

"Uma torre de água no centro da área de serviço enviava água corrente quente e fria, em abundância, para todas as dependências da cozinha", ele escreve em "Carême: Cozinheiro dos Reis" (Zahar).

Para Jean-Marc Albert, professor de história em Paris especializado no estudo das relações entre a culinária e os homens do poder, "a arte da mesa é a arte de governar".

"A mesa constitui uma das ferramentas políticas mais sutis e mais eficazes", escreveu —máxima compreendida claramente na visita à cozinha real espanhola, mas que foi e continua sendo seguida mundo afora.

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LUIZA FECAROTTA, 36, é crítica de gastronomia da Folha e curadora do festival Fartura - Comidas do Brasil.


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