Folha de S. Paulo


O retorno da orquestra brasileira que mescla jazz e música africana

RESUMO Mais de quatro décadas após ter encerrado suas atividades, a Orquestra Afro-Brasileira está de volta. O regresso ocorre em paralelo ao lançamento de um disco em homenagem aos 75 anos de fundação do grupo, que de forma original mesclou o universo percussivo-religioso de origem africana com instrumentos do jazz.

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Produzindo um som semelhante ao do berimbau, o urucungo rompe o silêncio e introduz o ritmo-base. Após alguns compassos, o ronco grave da angona-puíta inicia a marcação do contratempo. Chacoalha o ganzá, retumbam o surdo e o atabaque. Sobre o tecido percussivo, atacam os sopros: saxofones, trompetes, tubas e trombones emitem acordes metálicos. Por fim a voz tonitruante entoa uma melodia em iorubá.

Mais de quatro décadas após ter encerrado suas atividades, a Orquestra Afro-Brasileira está de volta. Agora sob a batuta do barítono e percussionista Carlos Negreiros, 75, único remanescente vivo do conjunto original, a orquestra marcou seu regresso com show no histórico teatro João Caetano, no Rio, em meados de outubro.

O retorno das apresentações ocorre em paralelo ao lançamento de um disco em homenagem aos 75 anos de fundação do grupo, completados em 2017.

A trajetória dessa orquestra negra, que de forma original e pioneira mesclou o universo percussivo-religioso de origem africana com instrumentos de sopro da tradição jazzística, confunde-se com a de seu criador e maestro, Abigail Moura (1904-70).

Apesar de sua relevância histórica, Moura é uma nota de rodapé nos registros da música brasileira. As escassas informações sobre sua vida e obra provêm sobretudo do testemunho de Negreiros, que o conheceu no início dos anos 1960.

À época estudante de canto lírico na Escola Nacional de Música do Rio, Negreiros deparou-se com um cartaz num mural da instituição recrutando cantores para uma ópera negra. Intrigado, apresentou-se à orquestra, mas não foi aceito, pois seu timbre era diferente do buscado. Mesmo assim, pediu para ficar, admirado com o que via.

"Foi um choque quando cheguei lá; os músicos todos negros, com aqueles instrumentos estranhos de percussão, que até então eu desconhecia. Fiquei fascinado."

Acabou sendo "adotado" por Abigail Moura e tornou-se uma espécie de faz-tudo da orquestra. Ao mesmo tempo, o maestro cuidava da formação musical de Negreiros, introduzindo-o nos instrumentos de percussão, a começar pelo gonguê —"para pegar noções de tempo e andamento".

A fim de aprimorar sua voz para os objetivos do conjunto, o maestro recomendou distanciá-la do canto erudito europeu e aproximá-la do gutural: "'Você precisa perder o cristal da sua voz', ele me dizia".

RECONHECIMENTO

O grupo ensaiava semanalmente num estúdio cedido pela Rádio MEC, onde Moura era copista de partituras. Músicos e pesquisadores iam aos ensaios para conhecer o trabalho, conta Negreiros: "Moacir Santos [1926-2006], por exemplo, que tinha interesse em desenvolver uma obra em cima de linguagem afro-brasileira, apareceu algumas vezes para conversar com o maestro".

As récitas eram envoltas numa aura de misticismo. Antes dos concertos, Moura submetia atabaques, roupas dos músicos e a si próprio a rituais de preparação oriundos da tradição religiosa afro-brasileira.

As apresentações eram frequentados por diplomatas, músicos renomados e intelectuais. O filósofo e escritor franco-argelino Albert Camus, na sua passagem pelo Brasil em 1949, foi a uma dessas exibições, levado pelo dramaturgo Abdias do Nascimento, fundador do Teatro Experimental Negro.

O reconhecimento era fruto das inovações trazidas pelo maestro. "Abigail é um dos primeiros a mostrar que a música descendente da diáspora negra é estruturada por meio de princípios formais claros, oriundos da cultura de matriz africana; ele, além disso, insere a música afro-religiosa dentro de um padrão de música orquestral", diz Letieres Leite, líder da Orkestra Rumpilezz, espécie de herdeira musical do grupo de Moura.

"Por fim, é de extrema importância que ele tenha tido a visão de deixar essas coisas registradas em disco", continua Leite. Foram dois LPs gravados: "Obaluayê", de 1957, e "Orquestra Afro-Brasileira", lançado em 1968.

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As preocupações de Moura iam muito além do aspecto musical. Numa espécie de manifesto em que buscou definir sua orquestra negra, o maestro escreve: "[ela é um] conjunto que divulga a arte e a cultura musical do negro no Brasil. (...) Minha música se desenvolve harmonicamente apoiada no piano, nos saxofones, pistons e trombone, não abandonando os instrumentos rítmicos como alta expressão. (...) Nela descrevo os dramas, as tragédias vividas pela minha raça".

Emanoel Araújo, curador e criador do Museu Afro-Brasil, destaca o engajamento de Moura. "Não era apenas o som, havia também a questão da religiosidade e a do resgate da memória negra", diz.

A aguçada consciência racial do maestro impregnava todos os aspectos do trabalho. Várias das pouco mais de cem apresentações da orquestra homenageavam personalidades negras, como Teodoro Sampaio, ou datas históricas, como a da promulgação da Lei do Ventre Livre.

Ele também tentava reagir com altivez ao racismo explícito. Num episódio testemunhado por Negreiros, Moura caminhava pela rua trajando seu habitual terno quando foi abordado por um policial, que o obrigou a mostrar o que ele levava na maleta.

"O maestro abriu a pasta e começou a mostrar uma por uma as partituras do calhamaço que carregava. O policial logo disse, 'Tá bom, tá bom', e ele: 'Não, agora espera, você não queria saber o que tinha aqui dentro?'. Achei aquela atitude fantástica."

VIDA

Abigail Moura nunca realizou estudos formais de música. Autodidata, aprendeu a tocar trombone e bateria numa banda local de Eugenópolis (MG), onde nasceu, e aprimorou-se na regência e na composição com as cópias que fazia na rádio e com os contatos que tinha com músicos e maestros que lá atuavam.

No início dos anos 1940, ele se apaixonou pela contralto Maria do Carmo. "Foi para ela que ele criou a orquestra", diz Negreiros. A fundação do conjunto data de 10 de abril de 1942.

Em meados dos anos 50, Carmo conheceu um destino trágico. Numa apresentação com a orquestra, ao fim de um canto religioso, ela teria literalmente enlouquecido no palco e nunca mais voltou a cantar.

O ocaso do maestro começou na década seguinte, devido a uma sequência de frustrações e reveses. Convidado com sua orquestra para participar do Festival Instrumental de Artes Negras, no Senegal, em 1966, Moura, segundo Negreiros, não pôde ir. Sua dispensa não fora aceita pela direção da Rádio MEC, então sob intervenção militar, sob o argumento de que não se poderia prescindir do profissional.

Como se não bastasse, o interventor da rádio também ordenou a destruição das fitas que continham gravações da orquestra e retirou o apoio dado ao conjunto, proibindo-o de utilizar os estúdios para ensaiar. "Eu estive na Comissão da Verdade e contei essas coisas. Ele foi uma vítima do regime militar", afirma Negreiros.

Abatido pelas dificuldades e com complicações decorrentes da diabetes, Moura morreu em 1970, extremamente pobre, em seu barracão na favela de Manguinhos, no Rio.

Nos dias que se seguiram à morte do maestro, Negreiros teve várias vezes o mesmo sonho, no qual ele lhe dizia: "Seu Carlos, o senhor tem que continuar". O barítono atendeu o chamado e, junto com Aurelino, outro membro da orquestra, tentou manter o grupo vivo.

"Mas as coisas não estavam dando certo", diz Negreiros. Logo depois, numa visita a um terreiro de umbanda, eles foram orientados a encerrar as atividades e a se livrar dos objetos ligados ao conjunto. Roupas foram atiradas ao mar, e os instrumentos foram parar num barracão de escola de samba. A orquestra acabou e entrou para o ostracismo.

RESGATE

A redescoberta se deu aos poucos —e contou com a participação fundamental de Emanoel Araújo e do produtor e pesquisador musical Grégoire de Villanova.

A volta à cena, por assim dizer, data do final da década de 1980, quando Araújo incluiu a capa do primeiro disco da orquestra no livro "A Mão Afro-Brasileira", no qual compilou figuras negras relevantes da nossa história.

Em 1999, Villanova se deparou com a imagem na casa de um amigo, em Salvador, e ficou intrigado: "Eu sabia que Obaluayê é um orixá, por isso estranhei o fato de haver na capa não somente percussionistas mas também pessoas com instrumentos de sopro. Eu não conhecia discos de candomblé com metais e fiquei muito curioso para saber como seria esse som".

O único —porém fundamental— senão era que o LP original tinha se tornado raridade: "Era simplesmente impossível encontrá-lo".

As coisas começaram a se encaminhar cerca de um ano depois, quando Villanova foi chamado por Araújo para produzir um CD da cantora Elsie Houston (1902-43), como parte da exposição "Negras Memórias, Memórias de Negro", que o curador organizava. O pesquisador topou, mas com a condição de que também pudesse relançar o trabalho da orquestra.

Com a ajuda de colecionadores, Villanova pôde enfim ter em mãos o disco de 1957. O esforço resultou num livreto sobre a orquestra acompanhado de um CD com 13 gravações restauradas.

Na visão do pesquisador, a música inventada por Abigail Moura foi uma espécie de anomalia em sua época. "Um negro sintetizar candomblé com música contemporânea, embutindo ainda um conteúdo político, era algo 'avant-garde' não só para os críticos musicais da época como para a própria comunidade negra".

Mas a semente da nova Orquestra Afro-Brasileira só seria plantada no final de 2014, quando Emanoel Araújo organizou uma exposição sobre o grupo no museu Afro-Brasil. Para marcar sua abertura, surgiu a ideia de reviver o conjunto para uma apresentação no auditório Ibirapuera, em São Paulo.

Convidado, Carlos Negreiros topou na hora: "Eu logo propus o projeto para o Caio [Cezar, que compôs os novos arranjos para as antigas canções], juntamos um pessoal e fomos lá".

O êxito do concerto insuflou em Negreiros o desejo de recriar a orquestra e gravar um novo disco. Faltavam, porém, os recursos. Com o apoio de amigos, admiradores e editais de cultura, as dificuldades foram pouco a pouco superadas.

Também foi paulatino o processo pelo qual os músicos foram assumindo a identidade da revivida Orquestra Afro-Brasileira. "Nesse show [em outubro, no teatro João Caetano], senti pela primeira vez que de fato formamos um grupo, que somos a orquestra", diz Negreiros. A missão dada em sonho pelo maestro Abigail Moura fora, enfim, cumprida.

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FERNANDO TADEU MORAES, 33, é jornalista da Folha.


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