Folha de S. Paulo


John Williams narra trajetória de fundador do Império Romano; leia

Laura Teixeira
Ilustração de Laura Teixeira

SOBRE O TEXTO O trecho nesta página integra "Augustus", romance vencedor do National Book Award (EUA) que será lançado pela Rádio Londres em janeiro. O livro narra a trajetória de Caio Otávio —que se tornaria o fundador do Império Romano­â€” por meio de cartas, fragmentos de diários, anotações pessoais e documentos oficiais, todos inventados, mas cuja autoria é atribuída a personagens históricos reais.

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É noite novamente, a segunda noite desta viagem que – fica cada vez mais claro para mim – pode ser a minha última. Não creio que minha mente esteja me abandonando junto com meu corpo, mas devo confessar que me precipitei na escuridão antes que eu pudesse notar seu avanço; encontrando-me fitando cegamente o Ocidente, sem enxergar nada. Foi então que Filipo não pôde mais conter sua aflição e se aproximou de mim com seu jeito ligeiramente rude que trai sua timidez e sua indecisão. Deixei que ele pusesse a mão na minha testa, para que pudesse avaliar o grau da minha febre, e respondi a algumas perguntas – mentindo, a bem dizer. Mas, quando ele tentou insistir que eu voltasse para a minha cabine sob o convés, a fim de ficar protegido do ar noturno, assumi o papel de velho carrancudo e teimoso, fingindo perder a paciência. Fiz isso com tanta energia que Filipo acabou acreditando em mim e se contentou em descer para buscar cobertores nos quais prometi me envolver. Ele decidiu permanecer no convés para não tirar os olhos de mim, mas logo caiu no sono e agora, deitado no convés, com a cabeça escondida entre os braços e aquela comovente e ingênua confiança dos jovens, dorme, certo de que acordará pela manhã.

Agora não consigo vê-la, mas há pouco tempo, antes que as brumas do crepúsculo se levantassem do mar para envolver o horizonte no Ocidente, tive a impressão de distinguir os contornos de uma mancha mais escura contra o vasto círculo do mar. Creio ter visto a Ilha de Pandateria, onde, por muitos, anos minha filha foi obrigada a viver exilada. Ela já não está mais em Pandateria. Dez anos atrás, julguei que ela pudesse voltar em segurança ao continente italiano; agora ela está morando na cidade calabresa de Reggio, na ponta da península. Por mais de quinze anos, não a vi nem pronunciei seu nome, tampouco permiti que sua existência fosse mencionada na minha presença. Era doloroso demais para mim. E esse silêncio foi apenas mais uma das muitas máscaras que usei na vida.

Meus inimigos, como é compreensível, assistiram com prazer àquela ironia do destino – pois o que puniu minha filha foram aquelas leis matrimoniais que eu mesmo promulguei e fiz sancionar pelo Senado, cerca de trinta anos atrás; e até mesmo meus amigos tiveram a oportunidade de lamentar sua existência. Horácio me disse que essas leis eram impotentes contra as paixões privadas do coração humano, e apenas aqueles que não têm nenhum poder sobre o coração, como o poeta ou o filósofo, podem persuadir o espírito humano em direção à virtude. Talvez nesse caso meus amigos e inimigos estivessem certos; as leis não levaram as pessoas à virtude, e a vantagem política que adquiri agradando aos segmentos mais antigos e tradicionais da aristocracia foi momentânea.

Nunca fui tolo de achar que obedeceriam às minhas leis matrimoniais e do adultério; eu mesmo não às obedeci, nem meus amigos. Virgílio, quando invocou a musa para ajudá-lo escrever a Eneida, não acreditava na existência daquela que invocava; era uma maneira que ele havia aprendido de começar o poema, uma forma de anunciar sua intenção. Assim também aquelas leis que implementei não eram tanto para que obedecessem literalmente, mas uma meta que devia ser alcançada; pois eu acreditava que não haveria nenhum possibilidade de virtude sem a ideia de virtude, e que essa, para ser eficaz, tinha de ser codificada na própria lei.

Eu estava enganado, naturalmente. O mundo não é um poema, e as leis não conseguiram realizar o propósito para o qual foram criadas. Mas, afinal, elas me foram úteis, embora eu não pudesse prever essa utilidade; e até hoje não me arrependo de havê-las criado, pois elas salvaram a vida de minha filha.

Conforme o mundo, com a idade, parece-lhe cada vez menos importante, o homem se pergunta sobre aquelas forças que guiaram suas escolhas. Decerto, os deuses são indiferentes à pobre criatura que luta para chegar a seu destino; e falam conosco de maneira tão oblíqua que enfim precisamos decidir, sozinhos, o sentido de seus presságios. Assim, no meu papel de sacerdote, examinei as entranhas e os fígados de centenas de animais e, com auxílio dos áugures, descobri ou inventei os portentos que me pareciam apropriados às minhas intenções; e concluí que os deuses, se de fato existem, não se importam. E, se estimulei o povo a seguir esses antigos deuses romanos, agi por necessidade, mais do que por convicção religiosa de que aquelas forças residem, ocultas, em cada pessoa"¦ Meu caro Nicolau, no final das contas, talvez você estivesse com a razão. Talvez exista um só Deus. Mas, se isso for verdade, você deu a esse deus o nome errado. Ele é o Acidente, e seu sacerdote é o homem, que sacrifica apenas a si mesmo e sua alma dividida.

Como conhecem muitas coisas, os poetas sabem disso melhor que a maioria das pessoas, embora coloquem esse conhecimento em termos que podem parecer banais. No passado, já concordamos que falam demais de amor, dando valor excessivo a algo que, na melhor das hipóteses, é um passatempo prazeroso; mas já não tenho mais certeza se essa nossa concordância de opiniões foi correta. Odeio e amo, dizia Catulo, falando daquela Clódia Pulcra, cuja família, como sabemos, causou tantos problemas a Roma, mesmo muito tempo depois de morta. Claro, não é suficiente; mas, mesmo assim, é um exemplo daquela natureza que nunca está totalmente satisfeita com o que o mundo oferece.

Você deve me perdoar, Nicolau; sei que você discordará, e que não tem como expressar sua discordância; mas, nos últimos anos, às vezes tenho pensado que talvez seja possível construir um sistema teológico ou até mesmo uma religião em torno da ideia do amor, se essa ideia fosse expandida um pouco além de sua aplicação usual e se fosse abordada de determinado modo. Agora, que não sou mais capaz de amar, tenho examinado esse poder misterioso que existia dentro de mim em suas muitas variações por tantos anos. Talvez o nome que damos a esse poder seja inadequado; mas, se é esse o caso, também o são os outros nomes, expressos ou ocultos, com que chamamos os deuses menores.

Estou convencido de que, na vida de todo homem, cedo ou tarde, chega o momento em que ele toma consciência, mais claramente que nunca, e independentemente do que ele consegue admitir, da terrível realidade da sua condição; do fato que ele está sozinho, e separado dos outros; e que ele apenas pode ser a miserável criatura que ele é. Olho agora para meus quadris magros, a pele enrugada de minhas mãos, a carne frouxa e manchada pela idade; e é difícil dar-me conta de que um dia este corpo buscou aliviar-se de si mesmo no corpo de uma mulher; e que uma mulher buscou o mesmo em mim. A esse instante de prazer, alguns dedicam suas vidas inteiras, tornando-se amargos e vazios quando o corpo os abandona, como é natural que seja. Aquela amargura e aquele vazio se devem ao fato de que eles conheceram aquele prazer sem saber o que esse prazer significa. Pois ao contrário do que muitos possam acreditar, o amor físico é o menos egoísta de todas as variedades do amor; ele almeja ser um só com o outro e, portanto, escapar de si mesmo. Esse tipo de amor é o primeiro a morrer, é claro, decaindo conforme o corpo decai; e por esse motivo, sem dúvida, tem sido considerado por muitos a variedade mais primitiva. Mas o fato de que vai morrer, e de que sabemos que vai morrer, torna esse amor mais precioso; e depois de conhecê-lo, não estamos mais irreversivelmente presos e exilados dentro de nós.

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JOHN WILLIAMS (1922-94) foi um escritor norte-americano. É autor de "Stoner" e "Butcher's Crossing" (Rádio Londres).

ALEXANDRE BARBOSA DE SOUZA, 45, é poeta e tradutor. Escreveu "Livro Geral" (Companhia das Letras, 2013).

LAURA TEIXEIRA, 41, é ilustradora e designer.


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