Folha de S. Paulo


Corsaletti faz crônica sobre churros e poema sobre Scarlett Johansson; leia

SOBRE O TEXTO Os textos nesta página integram "Perambule", novo livro do poeta Fabrício Corsaletti que intercala crônicas longas com poemas e prosas curtas. Seu lançamento, pela Editora 34, é previsto para janeiro.

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Carla Caffé
Ilustração de Carla Caffé

Se dependesse de pessoas acomodadas como eu, a humanidade ainda estaria se locomovendo em lombo de burro, ou pior: os burros é que estariam andando por cima da gente. Mas, graças ao caos, não há um ser humano igual a outro neste mundo — e já faz um bom tempo que a sociedade se deu conta de que a diferença é legal, meu.

Então não vou pedir desculpas. E nem teria por que fazer isso, pois desde a semana passada me juntei, por obra do acaso (se se pode chamar de acaso o fato de uma maçã ter caído na cabeça de Newton...), a essa diminuta parcela da população conhecida como Clã dos Inventores. (Se Augusto de Campos jamais pensou em me chamar de inventor, segundo a velha classificação de Ezra Pound, que dividia os poetas em inventores, mestres e diluidores, doravante o augusto Augusto vai ter que me chamar de inventor de qualquer jeito, se um dia me chamar de alguma coisa, claro.)

É que tive uma ideia genial — modéstia, aparte-se! Aviso aos invejosos de plantão (como tem invejoso por aí, é impressionante) que ela já foi devidamente registrada em cartório e recebeu o selo de "patente especial AA" — pra quem não sabe, AA corresponde ao A+ escolar, ou A com estrelinha, a depender da escola e do professor.

Ei-la, minha pepita: chama-se "rocambole de churros", e tenho que admitir que o nome é um pouco confuso. Mas e daí? O povo se acostuma. Não existe palavra mais estranha que "gentrificação", e no entanto todo mundo sabe o que ela quer dizer — é um liquidificador de gente, oras.

O rocambole de churros é, como o nome, embora precário, diz, um churro em forma de rocambole, isto é, um longo churro enrolado feito uma mangueira de molhar o jardim ou, melhor, feito um pirulito colorido de criança, daqueles bitelões. Não sei se me faço entender: o "rocachurro" (é só uma hipótese de abreviação; aceitamos sugestões) é composto de um único churro comprido enrolado sobre si mesmo, como — finalmente uma imagem iluminadora! — um espeto de linguiça calabresa das churrascarias tradicionais.

Agora o golpe de mestre: o "churrobole" (outra hipótese) será recheado com doce de leite argentino e/ou Nutella. E o "e/ou", aqui, não é uma afetação de estilo: o consumidor pode escolher se quer o seu "rocanchu" (mais uma) só com doce de leite por dentro e nada por fora (além do clássico açúcar e da opcional canela), com doce de leite por dentro e Nutella por fora (mamilos de doçura respingados ao léu na circular iguaria), só com Nutella por dentro (como os olhos da mulher amada, quando amada), ou com Nutella por dentro e doce de leite (argentino!) por fora.

Não sei se é fácil preparar o rocambole de churros — como injetar o doce de leite ou a Nutella dentro do tubo sinuoso constitui um mistério —, nem sei muito bem como deve ser servido, se num saquinho de papel, como pipoca, ou se num prato com garfo e faca. Mas boto fé que o pessoal do MasterChef, ou algum cozinheiro do quilo da esquina, vai dar um jeito.

Se eu não ficar famoso agora, não fico mais. Mas pelo menos nóis se diverte. Ou, como diz o ditado sexista, todos sonham com a Glória, mas a Martinha também bate um bolão.

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Cinema

dói o dia, dói a vida
doer – meu único dom
não há cerveja que preste
nem há dose de bourbon
que anestesie os meus olhos
que ajuste da luz o tom
que leve pra longe as lágrimas
que encharcam meu moletom
só uma coisa me salva —
é ver Scarlett Johansson

no filme pode ser ruim
o filme pode ser bom
as fotos, sempre perfeitas
ainda que sem o som
da sua voz cobreada
dourada por um sol com
raios lunares — trançada —
voz da turma de Oberon
enfim, quando vejo e quando
ouço Scarlett Johansson

dormir com ela (divago)
debaixo de um edredom
depois da grande batalha
verdadeiro Armagedom
acordá-la ronronante
na boca, nenhum batom
servir seu café na cama
e ovos, claro, com bacon
que talvez ela recuse
ela — Scarlett Johansson

a carne é pura alegria
minha bike é sem guidom
ninguém sabe o que é poesia
será Scarlett Johansson?

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FABRÍCIO CORSALETTI, 39, é escritor, poeta e colunista da Folha.

CARLA CAFFÉ, 52, é arquiteta, diretora de arte e desenhista.


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