Folha de S. Paulo


Frans Krajcberg foi a maior influência que tive, afirma Walter Salles

RESUMO Frans Krajcberg, nascido na Polônia em 1921 e naturalizado brasileiro, criou uma das obras mais contundentes do nosso tempo. Neste texto, Walter Salles relembra como se conheceram e fala das muitas vidas do amigo, militante ecológico, ex-combatente soviético e artista dificilmente classificável, morto em novembro. Leia também reportagem sobre o artista em seus últimos anos de vida.

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Com o tempo, passei a chamá-lo de meu irmão mais jovem e radical. Nascemos no mesmo dia, 12 de abril, e comemoramos a data juntos muitas vezes. Ficamos amigos em 1986, quando filmei um documentário sobre ele, "O Poeta dos Vestígios".

Começamos a rodar em Nova Viçosa, onde Frans Krajcberg vivia na sua casa suspensa no ar, e o seguimos até o interior da Amazônia. Ali, no meio das queimadas, ele colhia a madeira calcinada que seria a matéria de suas esculturas.

"Vamos acordar, safados!" Mesmo alerta todos os dias, às 4h30. O diretor de fotografia Walter Carvalho e eu saltávamos das camas suspensas do seu ateliê, ainda zonzos, para escapar da segunda chamada. Tomávamos o café da manhã na penumbra, juntos, cercados pelos vira-latas que acompanhavam Krajcberg como sua sombra. E lá estávamos nós, trabalhando nos primeiros sinais de luz.

Não havia distância entre o que Krajcberg pensava e dizia e o modo como agia. Essa coerência absoluta, cada vez mais rara, desconhecia meias palavras. Ele foi a maior influência que tive, e sem ele não haveria "Socorro Nobre" ou "Central do Brasil". Nem por isso ele deixava de criticar meus filmes e me apontar outras direções.

Walter Carvalho e eu fomos crescentemente tomados por essa honestidade que, para quem não era próximo de "seu Kraj", podia soar como rabugice.

Nunca conheci alguém com um sorriso tão pleno, ou recebi um abraço tão forte e afetuoso. Malgrado tudo que havia sofrido, Krajcberg mantinha um humor desconcertante, a criança viva dentro dele.

Durante muitos anos, ele me ligava fingindo ser outra pessoa, e eu entrava na brincadeira. O primeiro que dissesse "safado!" ganhava, e o prêmio era a risada de Frans ecoando desde Nova Viçosa. Uma risada lúdica e contagiante, que vencia os estalos da ligação.

O tempo voou e, em meados de novembro, recebo em um aeroporto uma mensagem de Walter Carvalho: "Seu Kraj virou passarinho". A primeira reação foi de dor e impotência. Muitos momentos que marcaram a convivência que tivemos voltaram à superfície —e não param de ecoar.

TANTAS VIDAS

"A vida não deveria ser uma, mas duas. A primeira para ensaiar, a segunda para viver", disse Vittorio Gassman em um programa que dirigi para a TV Manchete pouco antes de conhecer Frans Krajcberg.

Krajcberg não teve uma ou duas vidas. Teve muitas, cada uma mais surpreendente do que a outra. Nas longas conversas que tivemos, ele foi adicionando camadas a essa história pessoal que tomou forma como um quebra-cabeça inimaginável para mim.

A primeira imagem que surge é a do menino pobre nascido em Kozienice, filho de um vendedor de sapatos polonês, judeu e ateu. Sua mãe, Bina Krajcberg, era líder do partido troskista local.

Pouco antes da invasão nazista que deflagraria a Segunda Guerra em 1939, Bina anteviu o que estava para acontecer. Reuniu os quatro filhos e os exortou a fugir na direção da União Soviética. Frans, o mais jovem, foi o único que seguiu o conselho.

Mesmo assim, escapou por pouco. Bina foi presa pela polícia polonesa e se tornou uma das primeiras militantes assassinadas pelo nazismo. Antes de fugir, Krajcberg ainda viu seu corpo na delegacia de Radom, a corda que a enforcou em volta do pescoço.

Começa então a segunda vida de Krajcberg, a do andarilho que marcaria toda sua existência. Ele partiu a pé da Polônia, juntou-se ao exército soviético e lutou na Batalha de Leningrado. Nessa época, soube que toda sua família havia morrido, a maioria nos campos de concentração.

A pintura e o desenho surgiram como forma de resistência, de imersão em outra realidade. Não foi aceito na Escola de Belas Artes de Vitebsk e se formou em engenharia. Foi inspetor de poços de irrigação no Cazaquistão, onde viveu histórias que mereceriam um texto ou um filme à parte.

Deco Farkas
Ilustração de Deco Farkas une rosto de Krajcberg a uma de suas obras

Foi paraquedista aos 22 anos e sobreviveu a duas bombas que explodiram perto de seu corpo. A segunda acarretou perda grave de memória. Por anos não conseguia se lembrar dos nomes dos irmãos.

Não arredou pé e alistou-se novamente no exército soviético, desta vez num batalhão de resistentes poloneses. Lutou em Varsóvia e Radom, onde sua mãe havia sido enforcada. Procurou a casa de seus pais em Kozienice. Uma mulher polonesa atendeu, o xingou e bateu a porta em sua cara. Foi um ponto de ruptura para ele. "Deixei de ser polonês naquele momento."

Krajcberg retomou a caminhada. Na libertação de um campo de concentração, viu centenas de corpos calcinados e entendeu toda a dimensão do horror que havia se abatido sobre a Europa e a sua família.

Krajcberg passa a fronteira da (então) Tchecoslováquia e da Alemanha clandestinamente. A pé e de carona, chega a Stuttgart. É paradoxalmente na Alemanha que começa sua terceira vida.

BAUHAUS

Dessa parte, Krajcberg falava com carinho especial: inscreve-se na Escola de Artes de Stuttgart, dirigida por Willi Baumeister, egresso da Bauhaus. Muitos dos membros da instituição, incluindo Walter Gropius, haviam se exilado durante o nazismo.

Baumeister, que preferiu resistir de dentro da Alemanha, retomava o trabalho interrompido naquele ano de 1945. Frans era um homem bastante privado, mas se referia a ele como um segundo pai, que percebeu seu talento e o apoiou nos dois anos que ele passou na escola.

Foi Baumeister quem convenceu Krajcberg a não ficar numa Alemanha em que as cicatrizes estavam à flor da pele. Escreveu uma carta de recomendação para um amigo, o pintor Fernand Léger, cuja companheira, Nina, era russa.

Com essa referência improvável, Krajcberg se dirige a Paris. Léger o recebe, o acolhe e o apresenta a outro pintor, Marc Chagall, em cuja casa Krajcberg vive enquanto esteve na capital francesa. E é uma amiga de Chagall que o ajuda a tomar um barco para um novo destino. O Brasil.

"Por que o Brasil?", perguntei durante a filmagem de "Socorro Nobre". "Eu não acreditava mais no homem, e tinham me dito que no Brasil não havia homem", respondeu, o sorriso malicioso.

RENASCER NO BRASIL

Ele tinha 26 anos quando chegou ao Brasil. "Dormi em bancos de praças, voltei a experimentar a fome, não falava a língua." Continuava sua vida de errância, até que conseguiu um contato com a assistente de Ciccillo Matarazzo, que preparava a primeira Bienal de São Paulo.

Krajcberg contava com uma ponta de orgulho que, em 1951, trabalhou como montador de quadros na Bienal. Seis anos mais tarde, quando Jackson Pollock ganhou o Grande Prêmio da Bienal de São Paulo, em 1957, Krajcberg recebeu o prêmio de pintura.

Entre a Bienal de 1951 e a de 1957, Krajcberg ficou amigo de Volpi, Sergio Camargo e Lasar Segall. É Segall, de origem lituana e marcado pela vanguarda expressionista alemã, quem convida Krajcberg a trabalhar no Paraná em 1952, como engenheiro florestal de uma fábrica de celulose ligada à sua família.

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Vivendo numa casa no meio da floresta, Krajcberg encontra finalmente o isolamento que buscava. Depois do trabalho, começa a desenvolver cerâmicas e a buscar pigmentos naturais, que ele sempre preferiu aos industriais.

"Comecei a ouvir e a decodificar ruídos que eu não conhecia, os dos animais na floresta, os que anunciavam a chuva. Depois de 12 anos de obstáculos, tive finalmente a sensação de reencontrar o sentido da vida", diria aos amigos Claude Mollard e Pascale Lismonde, autores da biografia "La Traversée du Feu" (a travessia do fogo).

Em 1954, o escultor Sergio Camargo lhe empresta uma casa em Laranjeiras, no Rio, que o escultor Franz Weissmann divide com ele. É nesse espaço que Krajcberg começa a pintar mais ativamente e onde nasce a série "Samambaias". Passa a dar nomes em português para seus trabalhos. Mais do que abraçar o país, sentia-se brasileiro. E ai de quem sugerisse o contrário.

O Prêmio da Bienal de São Paulo abriu portas para Krajcberg. Nos anos seguintes, colabora com Braque em Paris, expande suas experiências com materiais, transparências e moldes que reproduzem formas da natureza.

Um desses trabalhos é exposto no pavilhão brasileiro da Bienal de Veneza de 1964 e ganha o Prêmio da Cidade de Veneza. Naquele ano, Rauschenberg leva o Grande Prêmio da Biennale.

MANIFESTO

Nesses anos em que alarga suas investigações e seu vocabulário artístico, Krajcberg encanta-se com as colagens de Matisse, feitas quando o pintor francês já estava doente. Há uma vitalidade contagiante nessas formas inspiradas na natureza, que marcariam Krajcberg para sempre.

É também nesse período que ele encontra o crítico de arte Pierre Restany, o teórico que havia lançado o movimento dos novos realistas.

Com Krajcberg e Sepp Baendereck, Restany escreve o "Manifesto do Rio Negro" em 1978. Enquanto o regime militar falava de ocupação da floresta e das terras indígenas, o manifesto propunha o contrário. Foi um grito que antecipou a grande maioria dos atos em defesa da Amazônia e, ainda hoje, deixaria os ruralistas com os caninos à mostra.

Há uma lógica ao mesmo tempo límpida e implacável na obra de Krajcberg. Os conjuntos esculpidos a partir dos troncos calcinados que recolheu durante anos na Amazônia são uma extensão de tudo que ele havia vivido. O horror da guerra e as áreas devastadas da floresta estavam, para ele, interligados. "É uma obra entre o paraíso e o inferno", na descrição de Mollard e Lismonde.

Sua prática artística não era apenas um gesto de resistência, mas também de transmutação da matéria. "Olhe a diversidade dessa natureza", repetia. "Ela baila, quanta riqueza, dá até vontade de dançar." Dessa percepção nasce uma prática artística de quem não acreditava mais no homem, mas paradoxalmente acreditava profundamente nas possibilidades da vida.

CASA NA ÁRVORE

Tudo, na vida de Krajcberg, era uma extensão do que ele acreditava. Um exemplo é a casa que projetou em Nova Viçosa, ao mesmo tempo sólida, enraizada no tronco que a sustenta e dando a sensação de que poderia alçar voo a qualquer momento.

O assombro que senti quando a vi pela primeira vez é difícil de descrever. O andarilho, o homem que caminhou e lutou em tantos países, levou 50 anos para construir sua casa com as próprias mãos. Como o resto de sua obra, ela repousa sobre um tronco que recebe uma nova função, uma segunda chance.

Foi em volta dessa casa que um amplo grupo de amigos comemorou os 80 anos de Krajcberg. Remexo nas fotos que tirei na época e reencontro Tunga, Vergara, Pierre Barouh, o fotógrafo e amigo Roger Pic, entre tantas outras pessoas que lhe eram próximas.

Era em volta dessa casa que ele reunia suas "colinhas", como ele chamava os amigos e amigas mais próximos. Como eram "colinhas" os cães que o seguiam em toda parte, mesmo quando não o conheciam. Junto com Walter Carvalho, vi a vegetação em volta dessa casa crescer, até que ela passou a se confundir com as árvores no seu entorno.

Desde seu desaparecimento, uma sensação de vazio se tornou constante. Sinto falta de não ter exclamado "safado" mais vezes e, sobretudo, de não ter acompanhado de perto os últimos anos de Krajcberg. Para isso, não há segundas chances.

Além dessa sensação de incompletude, são muitas as imagens que se embrulham nesse ato final: suas mãos amplas e calejadas segurando meu primeiro filho, as primeiras pisadas no mangue ao seu lado, as viagens a bordo de sua pick-up branca, que ele dirigia em velocidades estonteantes, sorriso no rosto.

Se for para escolher apenas uma imagem, fico com a que Walter Carvalho registrou em "Socorro Nobre": acompanhando os pés nus de Krajcberg, a princípio caminhando, para depois tomar mais e mais velocidade, tornando-se menos e menos concreta.

No final dessa corrida, Krajcberg voltou a falar de sua mãe, mas poderia estar falando de toda sua existência. "Não há nada mais bonito do que viver e morrer por uma causa."

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WALTER SALLES, 61, cineasta, é diretor de "Central do Brasil" e dos documentários "Krajcberg: o Poeta dos Vestígios" e "Socorro Nobre".


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