Folha de S. Paulo


Cineasta mergulha na cultura negra do Harlem, hoje um bairro gentrificado

Seth Wenig/AP
Morador de rua do Harlem, bairro que foi alvo de intensa gentrificação em Nova York

"Viver no Harlem é viver nas entranhas da cidade. É viver uma existência labiríntica em ruas que explodem rumo ao céu, com os pináculos e as cruzes das igrejas, e se atravancam sob os pés cheias de lixo e podridão. O Harlem é uma ruína e até seus aspectos ordinários são indistinguíveis das imagens distorcidas que aparecem nos sonhos."

Ou nas lembranças. Kahlil Joseph, artista e cineasta que ganhou fama rodando os clipes de Beyoncé e Kendrick Lamar, parece ter voltado a essas impressões —descritas por Ralph Ellison na década de 1940— no filme "Shadow Play" que acaba de estrear no New Museum.

Sua nostálgica colagem visual, agora em cartaz mais de cem quadras ao sul do famoso bairro de Nova York que retrata, é um turbilhão de memórias negras incertas, fraturadas e eletrizadas pelos berros das sirenes na cidade.

Um homem negro afrouxa a gravata ao se deitar numa banheira, dançarinos assombram salas fuliginosas com estranhos espasmos. Debaixo da terra, os trens deslizam a toda velocidade e, na TV, comentaristas esportivos analisam lances de uma partida de futebol americano.

Em tempos marcados por tuítes raivosos do presidente Donald Trump atacando atletas que se ajoelham em protestos na hora do hino nacional, Joseph mergulha na experiência negra nova-iorquina para construir um lamento pela perda do que via como um refúgio.

Mas o Harlem, como o resto de Nova York, segue o fluxo do dinheiro —e da gentrificação. O bairro negro está cada vez mais branco e não se fala mais em resistência cultural.

DINHEIRO DANÇA

Nas ruas da vizinhança, caixas de som tremiam no último verão com versos de "Bodak Yellow", da rapper Cardi B, revelação da música que começou sua carreira fazendo strip-tease em clubes do Bronx e chegou ao topo das paradas de sucesso dizendo que ela já não dança, mas faz "o dinheiro mexer".

Scott Roth/Invision/AP
A cantora Cardi B, ex-stripper que faz sucesso como rapper

Nos versos desse seu single que viralizou, ela conta que ganhou uma grana e consertou os dentes, ostenta decotes estonteantes em vestidos Yves Saint-Laurent e se equilibra sobre vertiginosos saltos Christian Louboutin, aqueles de sola vermelha que ela chama de "sapatos sangrentos".

Uma questão de classe ainda machuca. Seu último protesto foi a favor de uma greve de strippers que deixou parte dos homens de Nova York desolados. Mulheres pararam de tirar a roupa no palco quando garotas que trabalham atrás do bar decidiram também ousar nos decotes para chamar a atenção, desviando o destino dos dólares enfiados em calcinhas.

NEGRITUDE TRANS

Longe do Harlem, em uma galeria de arte do Chelsea, a sul-africana Zanele Muholi construiu um panorama visual da vida secreta de lésbicas e transgêneros perseguidos em seu país, em uma das mostras mais potentes da temporada.

Negríssimas, suas retratadas brilham feito petróleo em imagens de altíssimo contraste. Muholi também aparece em autorretratos trajando fantasias de papel crepom que evocam as vestes de uma nobreza "fake" ou armaduras feitas para enfrentar ataques de armas químicas.

Um dos retratos mais magnéticos da exposição mostra uma figura esguia em plena transição para o corpo de mulher. Ela encara a câmera com a altivez de príncipes e princesas do Harlem e do Bronx, aqueles que, como Cardi B, fizeram fortuna desafiando o ódio e o preconceito.

LUZ E TREVAS

Dois mestres da pintura também turbinam de forma indireta esse contraste entre preto e branco. No Met Breuer, o anexo do Metropolitan, está Edvard Munch, o expressionista norueguês que entrou para a história com "O Grito". E na sede principal do museu, à beira do Central Park, está David Hockney, o britânico apaixonado pelo sol —e pelos garotos— da Califórnia.

Enquanto a obra atormentada de Munch se revela um mergulho no abismo, com sombras densíssimas rondando seus personagens angustiados, Hockney constrói uma celebração hedonista em torno do corpo de belos rapazes nadando em piscinas nos quintais das casas modernistas de Los Angeles.

Esses são retratos de estágios distintos do desejo. A libido à flor da pele do primeiro contato com o sonho americano nas colinas de Hollywood e a solidão ensurdecedora dos fiordes da Noruega em atrito a quadras do velho Harlem.

SILAS MARTÍ, 33, é correspondente da Folha em Nova York.


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