Folha de S. Paulo


Leia dois poemas ainda não publicados do escritor e psicanalista Luiz Meyer

Mariana Serri
Ilustração de Mariana Serri

SOBRE O TEXTO Nesta página são reproduzidos poemas inéditos que farão parte do livro "Sujando o Ninho", ainda em preparação. O psicanalista e poeta, de 79 anos, é autor de "Réu Confesso: Poemas Reunidos (1968-2010)", publicado pela Ateliê Editorial.

*

POEMA DIDÁTICO

Confrangido, curvei-me
à evidência: este é meu tempo
e agora o que abraço
é só carcaça.
(com ela me entrelaço).
Espelha a voz interna
monturo articulado
descarnada estrutura indicando
feitos desfeitos
largados pela estrada.
Carcaça é resto
ferro carcomido
forma sem contorno
sombra devassada
corpo feito de lacunas
mexilhões se encrustando
no casco naufragado
na ossada do edifício inacabado
"cadaveri eccellenti".

Neste meu tempo
esfumou-se a promessa de horizonte;
sequer há pranto funerário
Escárnio, refugo, sorvedouro,
uma desfeita feita após a outra
calcinou o compromisso.
E o que abraço é
esta pilha de carcaças.

Assim descrevo o arcabouço
-mamilo sem auréola-
revelado em sua transparência:
carcaça é legado de propina.

*

FILHO

Avança na piscina
com braçadas vigorosas.
É homem feito,
escolheu o seu caminho:
vê-se pelo modo como nada,
pelo jeito cuidadoso com que trata
o próprio filho.

Corta a água
segue em frente
constrói seu destino.
Chegando à borda
mergulha recurvado,
retorna ao ponto de partida.
Seu trabalho, na água e fora dela,
é diuturno.

Tenho um filho
provedor de quem carece
e o modo como nada na piscina
mais o zelo que dispensa à sua prole
mostram um ser posto no mundo
sereno na labuta,
afeito aos termos do embate.

Mistério da origem!
Como pode alguém por mim gerado
possuir este senso de justiça?
Se o pai é apenas ardiloso
e fácil se acomoda ao consumo do conforto
de onde vem a batida destes braços
-consistente, ritmada-
a consciência do perigo,
a coragem do confronto?

Lá está ele, atento ao que se passa:
enche o peito, resfolega,
amassa o pão que ao voltar
coloca sobre a mesa da cozinha.
O esforço concentrado
deixa um rastro de borbulhas.

Findo o dia, sentado no seu colo
seu próprio filho lhe interroga:
sorri, baixa a cabeça
atende à sua fala.

(É um alivio vê-lo assim,
imune à minha herança)

Mariana Serri
Ilustração de Mariana Serri

*

LUIZ MEYER, 79, psicanalista, é autor de "Rumor na Escuta: Ensaios de Psicanálise" (Editora 34).


Endereço da página: