Folha de S. Paulo


Em Londres, resgate de Isaiah Berlin destoa de comemorações comunistas

Passado o auge das celebrações do centenário da Revolução Russa de 1917, a experiência socialista continua no foco de eventos em Londres –cidade onde Karl Marx viveu por mais de três décadas, escreveu sua obra máxima, "O Capital", morreu e foi sepultado em 1883.

Os primeiros anos de Marx na capital britânica —após ser exilado por sua participação nos levantes de 1848, derrotados em toda a Europa— e o início da colaboração com Friedrich Engels, que resultou no "Manifesto Comunista", são tema de um filme e de uma peça de títulos quase idênticos, mas com enfoques diversos.

O Capital - Livro 1
Karl Marx
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Quem assistiu a "O Jovem Karl Marx", do cineasta Raoul Peck (com estreia prevista no Brasil para 28/12), talvez tenha se decepcionado com a abordagem convencional, até kitsch, que tantas dessas cinebiografias de grandes homens acabam por adotar.

Já a peça "Young Marx" (o jovem Marx), em cartaz no teatro The Bridge —recém-inaugurado junto à ponte da Torre de Londres e com vista ironicamente deslumbrante da ultracapitalista city londrina—, é uma comédia que oferece abordagem bem diversa daquele momento da vida do filósofo alemão.

Reprodução
Karl Marx (1818-1883) e suas filhas, Jenny, Eleanor e Laura, e Friedrich Engels (1820-1895), por volta de 1860

As diferenças afloram na coincidente sequência final: Karl, a esposa Jenny, o amigo Engels e, na peça, até a agregada Nym (com quem Marx teve um filho jamais reconhecido), reunidos na sala de estar da família, dedicam-se a uma espécie de escrita colaborativa dos textos marxistas.

Enquanto no cinema a ocasião é tratada com a seriedade dos momentos históricos, no teatro a cena, espirituosa, termina com a leitura de uma carta de amor de Marx para a esposa que suportou a miséria daqueles anos e, perdoando-lhe os excessos, foi essencial à jornada intelectual do marido.

O ilustre alemão deve continuar na pauta da cidade em 2018, quando se comemoram os 200 anos de seu nascimento.

LIBERAIS, UNI-VOS!

Um dos melhores e mais inusitados eventos, em meio a tantos dedicados aos cem anos da tomada revolucionária do poder pelos bolcheviques, foi o "One Week in History" (uma semana na história), promovido pelo centro de cultura judaica JW3.

Mas o alvo das celebrações, desta vez, era um dos grandes teóricos liberais do século 20: o filósofo Isaiah Berlin, nascido em Riga (hoje capital da Letônia), mas educado na Inglaterra e alçado, especialmente a partir da Segunda Guerra, à posição de grande intelectual público.

Berlin guardava memórias de infância dos tumultos de 1917 —o que, nas palavras de uma das participantes do evento, a historiadora Fania Oz-Salzberger, teria imunizado o filósofo contra o fanatismo e a violência militante.

Sua morte, há 20 anos, coincidiu com a semana da efeméride da Revolução Russa —daí o título do evento. Além disso, há uma peculiaridade na produção bibliográfica do filósofo: defensor do que chamou de pluralismo contra qualquer tipo de dogma, Berlin iniciou sua trajetória de escritor publicando uma biografia de... Karl Marx.

Análise crítica e profunda da herança teórica marxista, trata-se mais de uma biografia intelectual, com incursões apenas pontuais à vida de Marx —um livro sóbrio como o pensamento de seu autor.

Talvez boa reflexão para tempos de grande polarização, em que o centro político e a própria ideia de democracia liberal perdem terreno, como observou outro participante do evento em Londres, Henry Hardy, organizador da obra até há pouco tempo esparsa de Berlin.

"Tem seu lado bom Berlin não estar mais por aqui", disse o escritor. "Talvez ele até mudasse suas previsões otimistas para o século 21, mas não acredito que tivesse abandonado a esperança."

"Precisamos trazer Isaiah Berlin de volta [ao debate político]", completou Oz-Salzberger.

DUAS EXPOSIÇÕES

As consequências da Revolução Russa para a arte soviética podem ser vistas em dois dos principais museus de Londres.

A Tate Modern exibe itens da maior coleção já reunida para documentar o efeito deletério do realismo socialista nas artes visuais das antigas repúblicas comunistas (especialmente no design gráfico).

O Victoria and Albert Museum, por sua vez, abriga uma megaexposição sobre as relações entre ópera, política e poder. Nesse tour de quatro séculos entre figurinos originais, quadros e partituras, destaca-se a seção dedicada à estreia de "Lady Macbeth", do compositor Dmitri Shostakovich, proscrito por ter desagradado Stálin com o espetáculo.

CHRISTIAN SCHWARTZ, 42, pesquisador visitante na FGV e na Universidade Cambridge, é jornalista e tradutor.


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