Folha de S. Paulo


Opinião

Comemorar? O verbo está errado; não há nada para comemorar

Alexis de Tocqueville, no clássico "O Antigo Regime e a Revolução", deixou uma das observações mais luminosas sobre 1789: os revolucionários começaram por destruir as iniquidades da monarquia absoluta, mas, em poucos anos, tornaram-se tão ou mais absolutistas do que Luís 16.

A observação de Tocqueville, com poucas alterações, pode ser aplicada à Revolução de Outubro de 1917: destruindo a grande revolução patriótica de fevereiro daquele ano, Lênin regressou à autocracia czarista –e levou-a a extremos de desumanidade que a Rússia e o mundo nunca tinham conhecido.

É importante começar com esta observação para desarmar a primeira mentira: a ideia generosa de que Lênin e seu bando corrigiram as injustiças do Império Russo. É falso.

O que não significa que as injustiças não fossem verdadeiras.

Nicolau 2º, que nunca se notabilizou particularmente pela inteligência (ou pela prudência), foi cavando a sua sepultura no primeiro quartel do século 20.

Duas guerras definem o seu talento suicidário: a primeira, ruinosa, contra o Japão (1904-05); a segunda, apocalíptica, contra a Alemanha e a Áustria-Hungria (1914-17).

Não foram só 2 milhões de russos que tombaram em combate. Nicolau 2º interrompia o incipiente desenvolvimento industrial e agrário do império para condenar um povo à miséria extrema.

É desses charcos infectos que nascem revoluções. Mas, em fevereiro de 1917, era ainda possível pensar uma transição de regime tolerável: liberais, social-democratas e até socialistas revolucionários uniam-se à soldadesca e ao povo para terminar com a secular dinastia dos Romanov.

O governo provisório, apostado em trazer a Rússia para "o grande concerto das nações europeias", abolia a pena de morte, garantia direitos políticos e civis básicos e preparava eleições para uma Assembleia Constituinte.

A Revolução de Outubro não se faz contra uma autocracia; faz-se contra a legalidade e o pluralismo de fevereiro, destroçando qualquer vestígio de "democracia".

Dizer que as liberdades mais básicas –de expressão, consciência, manifestação etc.– foram abolidas é um eufemismo.

Com Lênin, a Assembleia Constituinte, que ele foi incapaz de conquistar democraticamente, era dissolvida (Adolf Hitler, nesse quesito, foi pouco original); os opositores políticos eram presos ou fuzilados; o campesinato era pilhado e aterrorizado; os velhos campos de trabalho czaristas eram convertidos e alargados para receber os novos presos políticos; e a polícia secreta –a Tcheka– intimidava, sequestrava e matava como a arcaica Okhrana (polícia secreta do regime czarista) nunca se atreveu.

Revolução Russa, 100: mais

E se a Primeira Guerra Mundial (1914-1918) provocara 2 milhões de mortos, a guerra civil de 1918-1922 na Rússia multiplicava esse número por cinco.

Quando morreu, em 1924, Lênin atingira o seu objetivo fundamental: uma ditadura de partido único com os recursos institucionais, policiais e militares que Stálin limitou-se a herdar e aprofundar durante seu governo, até 1953.

Eis a segunda mentira que importa também corrigir: Josef Stálin não atraiçoou a teoria e a prática do mestre. Seguiu-a com redobrado esforço sanguinário.

"Comemorar" a Revolução de Outubro de 1917? O verbo está errado.

Não há nada para comemorar. Exceto a evidência –temporária?– de que o comunismo, tal como o nazismo, é hoje uma aberração minoritária.


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