Folha de S. Paulo


Análise

Pela lógica nacionalista de Putin, esconder a revolução faz sentido

"Devemos reconhecer que o colapso da União Soviética foi a maior catástrofe geopolítica do século."

A sentença mais célebre de Vladimir Putin, pronunciada perante o Parlamento russo, no discurso do Estado da União de 2005, contrasta, ao menos aparentemente, com a virtual ausência de celebrações oficiais do centenário da Revolução Russa, o evento fundador da União Soviética.

A decisão de silenciar sobre a dupla revolução de 1917 –a de fevereiro e a de outubro– foi tomada no ano passado. Putin comunicou a seus assessores que o tema deveria ser discutido "apenas por especialistas".

A ordem chegou aos veículos da mídia estatal por meio de Sergei Kirienko, o estrategista do Kremlin, e passou dali para a mídia privada, que, por medo ou interesse, jamais desafia o presidente.

Nos tempos soviéticos, a identidade oficial da União Soviética oscilava entre dois feriados nacionais.

O Dia da Revolução (7 de novembro), celebrado diante do mausoléu de Lênin, onde se reuniam os membros do Politburo (alta direção do Estado-partido), descrevia o país como a pátria do socialismo.

O Dia da Vitória (9 de maio), marco do triunfo na guerra contra a Alemanha nazista, comemorado em paradas militares na praça Vermelha, descrevia o país como grande potência mundial.

A Rússia pós-soviética abandonou o primeiro, que rememora a divisão, e conservou o segundo, que festeja a unidade.

A sentença famosa de Putin é mencionada, habitualmente, sem seu complemento. Logo depois dela, o presidente explicou que, "para a nação russa", o colapso da União Soviética "tornou-se um genuíno drama", pois "dezenas de milhões de nossos concidadãos e compatriotas viram-se fora do território da Rússia e, além disso, a epidemia da desintegração infectou a própria Rússia".

O conjunto do raciocínio evidencia uma escolha: a União Soviética legítima, para Putin, é aquela representada pelo Dia da Vitória, não pelo Dia da Revolução. A "catástrofe geopolítica" não seria, portanto, a queda da "pátria socialista", mas a do poderoso Império Russo.

Revolução é dissensão, divisão, conflito social. A memória da União Soviética –que abrange Stálin, expurgos, massacres e o Gulag– é fonte de controvérsia.

Putin, um líder autoritário, busca a coesão nacional em torno do regime, não a controvérsia, assunto que deve ser deixado, exclusivamente, aos "especialistas".

Revolução é, ainda, o levante dos "de baixo" contra os "de cima", o "assalto ao céu" das massas, um espectro que atemoriza o Kremlin.

O centenário não deve ser comemorado pois recordaria aos russos que, se o "céu" já desabou uma vez, pode desabar de novo.

A queda do regime pró-Rússia na Ucrânia, provocada pela revolução popular de 2013-14, certamente reforçou a convicção de Putin sobre a inoportunidade de celebrar os eventos de 1917.

ÁGUIA DE DUAS CABEÇAS

Revolução Russa, 100

Mas isso não é tudo. A Rússia pós-soviética reinstalou, junto com a bandeira czarista, a águia de duas cabeças, símbolo da Rússia imperial.

No Império Romano, a águia de duas cabeças representava o domínio do Ocidente e do Oriente Próximo. No Império Russo, transfigurou-se em representação da aliança secular entre o trono e a Igreja Ortodoxa.

Os bolcheviques triunfantes aboliram o símbolo, anularam o poder do patriarcado de Moscou, impuseram o ateísmo estatal e converteram igrejas em museus.

A Rússia não celebra 1917 pois Putin reatou os laços entre o Kremlin e a igreja.

O "segundo batismo da Rússia", na expressão de um ativista da Igreja Ortodoxa, manifesta-se por toda parte.

A Catedral de Cristo Salvador, em Moscou, dinamitada em 1931 por Stálin e substituída pela maior piscina pública do mundo, foi reconstruída no seu sítio original. Nela, em 2000, deu-se a canonização dos imperadores Romanov e, em 2007, a reunificação do patriarcado de Moscou com as igrejas ortodoxas russas fora da Rússia.

Putin aparece na TV atendendo a missas e prestando homenagens ao patriarca Cirilo. A convite do Kremlin, Cirilo discursou em janeiro perante a Duma (Parlamento), clamando pela proibição do aborto e da união civil homossexual. O patriarcado deu sua bênção à anexação russa da Crimeia e aos separatistas pró-russos da Ucrânia.

O cruzador Aurora, cujos tiros de festim anunciaram a tomada do Palácio de Inverno pelos bolcheviques em 1917, está ancorado permanentemente no estuário do rio Neva, em São Petersburgo. Diante dele, atores fantasiados de Pedro 1º e Catarina 2ª, mas não de Lênin ou Trótski, posam para fotos com turistas.

Putin sonha com a restauração de uma Grande Rússia, a encarnação moderna do Império Russo. Na narrativa histórica da Rússia oficial, o século 21 conecta-se, sem escala, ao século 19.

Do período sombrio da União Soviética o nacionalismo putinista recolhe apenas brilhantes fragmentos, como a vitória épica de 1945 e a jornada espacial pioneira de Yuri Gagarin. A águia bifronte está de volta.


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