Folha de S. Paulo


Historiador de arte revela episódios escondidos da Lisboa desconhecida

É comum numa visita ao Museu Nacional de Arte Antiga, em Lisboa, cruzar com o historiador de arte Anísio Franco ou até mesmo, com sorte, tê-lo como cicerone numa visita guiada.

A experiência é fascinante e inesquecível: o guia alia sabedoria, descontração e humor. Aconteceu um dia com o escritor Valter Hugo Mãe, que fez de Franco personagem no romance "A Máquina de Fazer Espanhóis" (Biblioteca Azul).

A Máquina de Fazer Espanhóis
Valter Hugo Mãe
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Desde o final dos anos 80, Franco faz visitas guiadas pela cidade, integradas na programação do Centro Nacional de Cultura.

Em seu livro "Caminhar por Lisboa" (Porto Editora), ele traça sete percursos a fazer pela capital portuguesa. "Lisboa e Roma têm um mesmo sentido delicioso das cidades muito orgânicas em que, após uma esquina, há sempre uma surpresa por descobrir. Um pouco ao contrário das cidades de traçado hipodâmico [plano urbanístico grego], com as suas ruas rectilíneas", escreve.

O historiador acaba de lançar novo volume pela mesma editora: "Lisboa Desconhecida e Insólita - Histórias que (Provavelmente) Nunca Ouviu".

O objetivo, segundo ele, foi "levantar um pouco o véu de sombras enigmáticas que escondem, por detrás das paredes alvas da cidade de Ulisses, episódios por vezes rocambolescos, mas também outros de um realismo cru, outros ainda por onde perpassam laivos de uma ironia hilariante e ainda outros que podem causar arrepios".

Na nova obra, Franco conta histórias que vão desde as múmias conservadas na capital até o castelo ali construído no século 19, e estimula um novo olhar sobre Lisboa.

Ele desvenda, por exemplo, a coleção de mais de 200 pratos em porcelana azul e branca, encastrados em talha dourada, localizados no teto em forma de pirâmide do palácio onde se instalou a embaixada francesa, e os relevos esculpidos nas colunas da igreja do Mosteiro dos Jerônimos, junto às arcas tumulares de Camões e Vasco da Gama.

Com narrativas, enriquece construções arquitetônicas, como o frontão do edifício da Câmara Municipal, com decoração do escultor francês Célestin Anatole Calmels, que, segundo ele, "resolveu classicamente figurar o Amor da Pátria como um jovem rapaz em nu integral e frontal. [...] Na época foi um escândalo. Proibiam-se as meninas de olhar para cima quando passavam na praça do município".

COMO AMAR EM PORTUGUÊS

Em sua mais recente edição, o Folio (Festival Literário Internacional de Óbidos), que se tornou gratuito e terminou no domingo (29), teve interessante leitura de poesia.

No palco estavam os colunistas da Folha Ricardo Araújo Pereira e Gregorio Duvivier, que acaba de lançar em Portugal "Sonetos" (Tinta da China), um livrinho com poemas satíricos cheios de métrica e sacanagem ainda inéditos no Brasil.

Ricardo leu alguns deles em voz alta, para deleite do público que lotava a praça e riu sem parar. "Nada disso, garanto, é pessoal/Não tem uma pitada de má fé,/Mas ninguém faz amor em Portugal/Sem antes passar horas num café.//Se quiseres transar em terra lusa,/Jamais alcançarás algum sucesso/Em levantar, de um português, a blusa/ Se não tomarem baldes de expresso".

O PAPEL DO ESCRITOR

O angolano José Eduardo Agualusa, que deixou a curadoria do festival, participou como autor, partilhando uma mesa com Milton Hatoum, que lançava a reedição de "Dois Irmãos" (Companhia das Letras), sob moderação de Ondjaki, Prêmio José Saramago em 2013.

A conversa focou em tópicos como o papel dos escritores na atualidade e a "coragem" de Raduan Nassar na cerimônia de entrega do Prêmio Camões. "O nosso alto-falante é de volume baixo. Como dizia Graciliano Ramos, nossas armas são fracas, a caneta e o papel, mas são armas", afirmou Hatoum.

O mais recente vencedor do Prêmio Saramago, Julián Fuks, esteve em outra mesa do evento com a portuguesa Ana Margarida de Carvalho, autora do laureado "Não se Pode Morar nos Olhos de um Gato".

Falaram do papel que os portugueses tiveram na escravatura, e a escritora contou que seus filhos ainda aprendem na escola que, na época dos descobrimentos, ia-se em busca de marfim, ouro, especiarias e "mão de obra" —um eufemismo para trabalho escravo.

"Ainda não fizemos as pazes com o passado de que não nos podemos orgulhar", disse ela, que aborda o mesmo assunto em Salvador, dia 11, na segunda edição do "Minha Língua, Minha Pátria", organizado pelo Instituto Eva Herz e pela Livraria Cultura.

ISABEL COUTINHO, 51, é repórter do jornal português "Público".


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