Folha de S. Paulo


Angolano, Pepetela fala da admiração por Jorge Amado além do Atlântico

Sergio Lima/Folhapress
Da esquerda para a direita: com a ex-primeira dama Ruth Cardoso ao fundo, o escritor angolano Pepetela conversa com o então presidente FHC, enquanto Jorge Amado (de costas) e Zélia Gattai recebem cumprimentos em evento da entrega do Prêmio Camões no Itamaraty, em 1997

Conheci Jorge Amado primeiro através dos seus livros, dos quais "Capitães da Areia" me introduziu no seu universo.

Teria eu 13 anos de idade, na minha cidade natal de Benguela, em Angola, à frente de Salvador da Bahia, um oceano no meio.

Não me lembro se tive dificuldade com a linguagem por haver palavras diferentes no mesmo português. Mas, antes disso, já líamos revistas brasileiras, daí a acreditar que não tive tanto obstáculo em entender e adorar "Capitães da Areia".

Fui lendo depois tudo o que podia do autor. Felizmente, naquela altura, as edições brasileiras chegavam com facilidade a Benguela e havia mesmo uma livraria, a Magalhães, cujas estantes estavam bem ornadas com os livros de Jorge Amado.

Foi das minhas maiores referências literárias e, certamente, muito me influenciou, pelo menos nos primeiros escritos. Também na maneira de olhar para as gritantes desigualdades sociais que existiam nos dois lados do Atlântico.

Passaram os anos da juventude e minhas vivências de luta política, exílio, guerrilha e finalmente independência. Pouco depois de sermos livres, Jorge Amado foi convidado pela União de Escritores Angolanos a visitar o país. Sua vinda coincidiu com a exibição na televisão da novela baseada no "Gabriela, Cravo e Canela", o que ainda mais fez crescer a admiração popular pelo baiano.

Foi recebido com o interesse e carinho que merecia, admirado por toda a minha geração.

Finalmente o conheci como pessoa. Veio com sua companheira de sempre, dona Zélia. Lembro um animado almoço na Funda, local de lagoas míticas perto de Luanda, onde também nos acompanhou Agostinho Neto, o primeiro presidente de Angola.

Muita comida tradicional, com o dendê a escorrer, os poetas a declamarem poesia, angolana e brasileira. A música dos dois lados do mar não podia faltar, também.

A partir de então, encontrávamo-nos em vários lugares do mundo. Alguns anos depois, fui visitá-lo na sua Salvador, coincidindo com o início das atividades com que a Bahia homenageava os 50 anos de carreira literária de Jorge Amado.

Houve uma comemoração no palácio do governo, a que fui convidado. Mantivemo-nos em contato, não muito chegado, mas bastante frequente, dadas as circunstâncias.

Até que me atribuíram o Prêmio Camões e fui com minha mulher recebê-lo no Brasil, das mãos do então presidente Fernando Henrique Cardoso, em 1997.

Já muito doente e fatigado, Jorge Amado fez questão de ir a Brasília para assistir à cerimônia, o que muito nos emocionou pelo gesto ímpar de generosidade.

Aí estava um escritor respeitado e admirado em grande parte do mundo, enfermo, que quis prestar homenagem ao seu colega mais novo e muito menos merecedor daquele prêmio (que ele tinha recebido uns anos antes).

Depois da cerimônia, ele propôs que fôssemos jantar juntos, os dois casais e a filha dele, Paloma, em um restaurante italiano que ela tinha na memória.

Sentado a seu lado, no meio da conversa, fiquei surpreso pela pergunta que me fez de repente: quem ganhou hoje a corrida de Fórmula 1?

Por acaso, eu escutava as notícias quando me vestia para a cerimônia no quarto de hotel, e calhou saber quem tinha sido o vencedor: um britânico, David Coulthard. Disse-lhe. Percebi que a notícia não era de seu agrado.

Nunca me teria passado pela cabeça que ele se interessasse por corridas de carro, e fiz o reparo. Ele sorriu. "Temos de ocupar a cabeça, não é?", me respondeu, cúmplice.

Este foi o último jantar que tive com ele. Nunca esquecerei que, quando foi para pagar a conta, o dono do restaurante não aceitou, a honra era grande demais ter nele seu Jorge e dona Zélia, cuja presença valia muito mais.

Tempos depois, perdíamos irremediavelmente um grande mestre e um amigo, um buraco imenso na literatura de língua portuguesa.

PEPETELA, 76, pseudônimo do escritor angolano Artur Pestana dos Santos, é autor de "Mayombe" e "A Geração da Utopia" (Leya).


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