Folha de S. Paulo


Literatura na Rússia só é livre porque hoje ninguém mais lê, diz professor

Arquivo pessoal
O especialista em literatura russa e soviética Ievguêni Dobrenko

RESUMO Referência em literatura soviética, Ievguêni Dobrenko explica a importância dos livros na Rússia do passado e do presente, afirma que o realismo socialista era arte de má qualidade que produzia ideologia para consumo, questiona o Nobel recebido por Svetlana Alexievich e classifica Putin como "oportunista ordinário".

*

Nascido em Odessa (Ucrânia) em 1962, Ievguêni Dobrenko é referência internacional na área da literatura soviética e pós-soviética.

Chefe do departamento de estudos russos e eslavônicos da Universidade de Sheffield, no Reino Unido, ele escreveu, organizou e editou 20 livros, com destaque para "The Cambridge Companion to Twentieth-Century Russian Literature" (compêndio sobre literatura russa do século 20), "Russian Literature since 1991" (literatura russa desde 1991) e "Political Economy of Socialist Realism" (economia política do realismo socialista).

Acaba de concluir mais um, sobre a cultura do stalinismo tardio, ou seja, dos últimos anos da Segunda Guerra Mundial até a morte do ditador Josef Stálin, em 1953.

Em entrevista concedida à Folha por e-mail, em russo, ele definiu o stalinismo como "um caso especial de reação da sociedade patriarcal ao desafio da modernização. Stalinismo, nazismo, fascismo, são todos tentativas da Idade Média para se defender da modernização, liberalização, globalização". Para Dobrenko, a "tarefa de todas as pessoas pensantes, intelectuais, é participar da luta contra a Idade Média contemporânea".

*

Folha - A literatura, na Rússia, sempre foi percebida como mais do que "apenas literatura". Quanto isso mudou na Rússia pós-soviética?

Ievguêni Dobrenko - Na ausência de liberdade política, a literatura se torna a única tribuna do pensamento social. Por isso a literatura na Rússia sempre foi mais que literatura. Era filosofia, psicologia e política. Era a única tribuna social. Simplesmente não havia outras formas de autoexpressão, protesto político e reflexão nacional. Nem no século 19, nem no 20.

Na Rússia pós-soviética, isso se modifica fortemente. A literatura se desenvolve com relativa liberdade, porque perde status. Pode ser livre porque ninguém a lê, encontra-se num nicho social pequeno.

Veja as "revistas grossas". Toda literatura estava nelas. Na época da perestroika [abertura econômica na década de 1980], quando houve um pico de interesse na literatura e na política, chegaram a tiragens de muitos milhões de exemplares. Agora são míseras. Ninguém as lê, além dos literatos.

A literatura na Rússia hoje é livre porque ninguém precisa dela. As funções de propaganda e luta política saíram da literatura para outras mídias: TV, internet etc.

Quais as consequências? Quem ama e acompanha a literatura diz que, em comparação com os séculos 19 e 20, acontece pouca coisa interessante. Mas o mesmo pode ser dito hoje de qualquer literatura nacional: alemã, inglesa, espanhola... Elas não têm um Goethe, um Shakespeare, um Cervantes.

A partir da perestroika, houve mais liberdade na Rússia para os artistas vivos e o país descobriu as obras dos emigrados e dissidentes cujas obras eram proibidas. Qual foi o impacto dessa descoberta na Rússia? O processo de unificação do cânone russo nas artes foi concluído?

Na época da perestroika, produziu-se verdadeira avalanche, uma torrente imensa de literatura de emigração, literatura dissidente e, por fim, literatura dos anos 1920, que fora escondida dos leitores. Isso jamais acontecera na história da literatura russa. A influência na consciência das massas dessa literatura recém-descoberta foi imensa e, pode-se dizer, revolucionária.

Aliás, falo não apenas da literatura russa, mas da literatura e do cinema ocidental do século 20. Após décadas de realismo socialista e pseudoliteratura oficial, havia novamente a descoberta da vanguarda, diversas tendências modernistas e muitos escritores e obras de primeira classe.

Contudo, até hoje o processo de unificação do cânone literário russo não foi completado. Antes, retirava-se da literatura tudo que parecia antissoviético. Hoje, ao contrário, afasta-se tudo que é soviético. Uma censura substituiu a outra.

Você escreveu que "o realismo socialista é o meio de produzir socialismo, a máquina de transformar a realidade soviética em socialismo". Poderia explicar?

Escrevi um livro inteiro a esse respeito [economia política do realismo socialista]. Se, do quadro do "socialismo", você tentar subtrair mentalmente o realismo socialista —romances sobre o entusiasmo na produção, poemas sobre a alegria do trabalho, filmes sobre a vida feliz, peças e quadros sobre a riqueza do país dos sovietes etc.—, não vai lhe sobrar nada que possa ser chamado propriamente de socialismo.

Vão sobrar dias cinzentos, o trabalho rotineiro cotidiano, o modo de vida desorganizado e pesado.

Em outras palavras, como essa realidade pode ser atribuída a qualquer outro sistema econômico, de socialismo, no fundo, não sobra nada. É possível concluir que o realismo socialista produziu os valores simbólicos do socialismo, em lugar da realidade do socialismo.

Claro que o sistema stalinista não era socialismo nenhum. Não tinha nada em comum com o projeto marxista, além da retórica. Politicamente, era o habitual despotismo feudal oriental; economicamente, um capitalismo estatal com terrível exploração da população; culturalmente, um retorno à Idade Média. Para que as pessoas achassem que era socialismo, fez-se necessário o realismo socialista.

Pode-se dizer que a sociedade soviética era, antes de tudo, uma sociedade de consumo –de consumo ideológico. A função principal [do realismo socialista] não é propagandística, mas estética e transformadora. Mística, privada de apoio na natureza humana, a economia política do socialismo não pode ser compreendida fora da estética. Era, inicialmente, um projeto imaginário e, consequentemente, político-estético.

O romance social antissoviético, como os de Alexander Soljenítsin, é essencialmente um derivativo do realismo socialista. O mesmo poderia ser dito dos romances de Svetlana Alexievich? Quanto o realismo socialista ainda reverbera na produção cultural russa?

Soljenítsin é um escritor soviético talentoso. Chamo isso de "literatura soviética antissoviética". A literatura russa do século 20 desenvolveu-se sob o signo dos clássicos. Os bolcheviques queriam criar uma nova literatura, mas foram educados nos clássicos e aprenderam com eles. Nos anos 20, havia o slogan "aprenda com os clássicos". Todos queriam escrever como Tolstói.

O realismo socialista é uma imitação do "grande estilo" dos clássicos russos. Simplesmente não havia outros exemplos, pois o modernismo não era reconhecido nem pelos bolcheviques, nem pelos tradicionalistas. Todos escreviam "sob Tolstói". Por isso Soljenítsin é derivativo do realismo socialista, mas o próprio realismo socialista é um derivativo dos clássicos russos.

Quanto a Alexievich, apesar de meu profundo respeito por seu trabalho —um trabalho literário muito importante, um trabalho social muito importante—, apesar de toda minha simpatia por sua posição política cidadã, conceder-lhe o Nobel pareceu-me (e não só a mim) inexplicável.

No geral, essa marginalização do Nobel na área da literatura me parece evidente. Muitos premiados continuaram sendo autores pouco conhecidos, enquanto escritores que já eram clássicos passaram desapercebidos.

Sobre o realismo socialista, é claro que continua parte importante da literatura russa contemporânea, só que não mais como sujeito, e sim como objeto –retrabalhado pela "soc-art" na pintura e pelos conceitualistas na literatura, por Lev Rubinstein, Dmitri Prígov, Vladimir Sorókin, Pelévin etc.

Mas não acho que o realismo socialista possa renascer. Isso é impossível, porque o realismo socialista não é simplesmente um estilo, ou algumas técnicas e convenções literárias. Não, o realismo socialista são, antes de tudo, as grandes instituições. É toda uma máquina de direção e controle. E, claro, é um sistema de coerção e violência, ou ameaça de violência.

O socialismo morreu junto com o gulag [campo de trabalho forçado]. Sem o gulag, ele não existe. Basta passar o medo, a pressão institucional se desintegrar ou enfraquecer, e o realismo socialista se apaga, como uma vela.

Mas, na medida em que o realismo socialista era uma arte politicamente engajada de má qualidade, é claro que ele permanece na literatura. Por exemplo, os romances monstruosos de Aleksandr Prokhánov —típica grafomania política paranoica— são derivativos do realismo socialista. Essa literatura é muito produzida, embora seja absolutamente periférica.

As artes russas pós-soviéticas evoluíram de uma produção com ausência quase total e sem precedentes de censura, nos anos Gorbatchov e Iéltsin, para o que parece ser um retorno da censura, especialmente a partir de 2014. Essa mudança pode ser comparada ao ataque stalinista às artes, em 1932?

Não, de jeito nenhum. E a questão não é o grau, mas a natureza da censura. Claro que a pressão sobre a intelligentsia criativa está aumentando. Seria estranho esperar outra coisa de [Vladimir] Putin. É um autocrata, que restaurou o regime autoritário. Para ele, a arte não é perigosa nem necessária, como era perigosa e necessária para Stálin.

O regime de Putin está baseado em um impulso antimodernização (nisso consiste seu principal perigo para a Rússia, cujo desenvolvimento está sempre atrasado com relação ao Ocidente). É um regime que leva não à modernização, mas à arcaização. Um arcaísmo patriarcal baseado em "laços espirituais", "santuários", vários tabus.

Trata-se de um oportunista ordinário, para o qual o principal é o poder pessoal. Nisso é parecido com Stálin. Para ele, o antiocidentalismo é uma posição política, que lhe garante o apoio de seu eleitorado. E ele vai explorá-lo.

É um populista clássico. Daí vem o que você chama de censura. Essencialmente, é a continuação da luta da sociedade contemporânea contra a medieval.

Essa luta acontece em todos os lugares do mundo. É um processo que começou com a Revolução Francesa e vai levar mais de século, se a humanidade não perecer em uma guerra nuclear ou em uma catástrofe ecológica produzida por ela mesma.

IRINEU FRANCO PERPETUO, 46, é jornalista e tradutor.


Endereço da página:

Links no texto: