Folha de S. Paulo


Escritor Sérgio Sant'Anna lembra o dia em que apertou a mão de Fidel Castro

Raquel Cunha/Folhapress
O escritor em seu apartamento, com a fotografia do aperto de mão com Fidel Castro

Estava com outros colegas escritores em Havana, em 2001, para ser jurado do prêmio Casa de Las Américas, bastante prestigiado na América Latina.

Nós só precisávamos ler os candidatos brasileiros e lembro que o livro que mais me impressionou foi "Os Sobreviventes" (Boitempo), de Luiz Ruffato. Lutei para que ganhasse o prêmio, mas acabou sendo escolhida uma biografia de Pedro Álvares Cabral, "Nau Capitânia" (Record), que depois sumiu na vala comum.

Minha motivação maior com a viagem era conhecer Cuba, ver de perto seus habitantes e sua vida social. Saltava aos olhos que não havia riqueza, mas também não havia pobreza. Acostumado que estava a países liberais, senti falta de uma vida mais cheia de atrações, consumismo, luzes, vitrines, as ilusões de um capitalismo que, no Brasil, só beneficia uma minoria.

Na noite da premiação do concurso, tive a honra de ser escolhido como orador em nome dos jurados e falei para o grande auditório lotado. O mais importante, porém, estava por vir.

Falava-se que Fidel Castro nos receberia e estávamos muito curiosos e excitados. Após a cerimônia, atendendo a uma chamada nominal, entramos em um ônibus, sem saber, por questões de segurança, qual era o destino. Depois de várias paradas, finalmente desembarcamos num palácio luxuoso.

O comandante, que trabalhava em qualquer horário, nos recebeu depois de meia-noite. Cumprimentou-nos efusivamente um por um.

Eu estava com minha mulher à época, Cristina, e fomos encaminhados a um salão muito amplo, onde já estava servido um bufê de primeira qualidade e vários tipos de bebida, incluindo um ótimo uísque escocês.

Fidel, ainda bastante robusto, usava um vistoso e elegante uniforme. Somente para não destoar dos convidados, como ele mesmo disse, segurava um copo de mojito, a bebida tradicional de Cuba, sem levá-lo à boca. À época já não fumava charutos e até se engajara numa luta contra o fumo.

Naturalmente, as pessoas se acercavam do líder cubano, que era gentil com todos e foi, aos poucos, elevando a voz até que sua fala se transformou numa espécie de discurso.

Todos prestavam muita atenção, pois Fidel era um sedutor.

Além de falar, como de praxe, nos desafios econômicos do país, responsabilizou o bloqueio norte-americano pelas dificuldades. De fato, o fim da União Soviética havia deixado Cuba desamparada e em busca de novos parceiros comerciais. Fidel tinha o Brasil em alta conta e, desde o governo do general Figueiredo, acenava para uma relação mais estreita com nosso país.

Mas o tema que mais o mobilizava no momento era uma campanha para trazer de volta o menino cubano Elian, que tinha sido levado por parte da família para os Estados Unidos. Anos depois, Fidel conseguiu mesmo trazê-lo de volta por vias judiciais.

Quanto à parte que me toca, houve dois momentos em que Fidel pôs a mão em meu ombro, mostrando que, para ele, um escritor brasileiro era digno de deferência. Confesso que me senti distinguido.

Voltando ao Brasil, recebi uma fotografia que retratava o momento em que eu apertava a mão de Fidel Castro. Dependurei-a na sala de meu apartamento, mas um tempo depois —creio que por causa de notícias de perseguições a adversários do regime, entre eles um poeta— guardei a foto.

Senti-me melhor assim, pois minha atitude diante de Cuba é ambígua. Hoje, tenho uma impressão amadurecida da Revolução Cubana: as conquistas sociais foram indiscutíveis e a derrubada do ditador Fulgêncio Batista, cruel e corrupto, foi um ato heroico e redentor de uma sociedade pobre, roubada e oprimida.

O Homem Que Amava Os Cachorros
Leonardo Padura
l
Comprar

Mas não podemos negar que a liberdade é um bem precioso e, nisso, a cultura ocidental está à frente.

Melhor do que qualquer outra fonte, porém, indico o romance do cubano Leonardo Padura, "O Homem que Amava os Cachorros" (Boitempo), que dá conta, magistralmente, de todas as contradições da ilha e dos países que adotaram um regime marxista-leninista.

SÉRGIO SANT'ANNA, 75, é escritor. Seu último livro é "Anjo Noturno" (Companhia das Letras).


Endereço da página:

Links no texto: