Folha de S. Paulo


Violência no Rio tem sido enfrentada na base do remendo, escreve sociólogo

Ricardo Borges/Folhapress
Soldados do Exército patrulham favela da Rocinha, na zona sul do Rio de Janeiro, após dia de confronto

RESUMO Autor argumenta que a insegurança no Rio deve ser analisada por dois ângulos. De um lado, a crise econômica e a dinâmica própria da capital fluminense ajudam a entender o aumento da violência. De outro, o arranjo institucional das polícias e do sistema judicial explicam a baixa efetividade do combate ao crime.

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As semanas passadas nos trouxeram à memória cenas com as quais não estávamos mais habituados. O poder público atônito e a sociedade amedrontada assistiram a conflitos entre facções criminosas transbordando nos bairros de classe média e alta do Rio de Janeiro, numa ilustração do que é o cotidiano de muitas comunidades pobres da cidade.

O surto de violência serviu para nos lembrar de que a crise política e econômica tem diversas faces sociais —e que estas, embora também sejam dramáticas, infelizmente não recebem a mesma atenção. A pauta monotemática dos últimos anos só tem sido quebrada quando somos surpreendidos por presídios rebelados, chacinas, ações do crime organizado, embates nas fronteiras etc.

A população brasileira convive com o medo permanente, e os eventos recentes no Rio resumem nossos dilemas.

A capital fluminense, segundo dados do ISP - Instituto de Segurança Pública, conheceu redução gradativa e notável na sua taxa de homicídios: do pico de 1994, quando se contavam 74 assassinatos para cada grupo de 100 mil habitantes, passou-se a 18,5/100 mil em 2015. No ano seguinte, contudo, o índice avançou para 20,5 e continua em ritmo crescente em 2017.

A Grande Niterói teve queda de 50,2 homicídios em 2005 para 28,2 em 2016. No interior do Estado, a diminuição foi menor, de 33/100 mil em 2006 para 23,2 em 2015. São resultados bastante expressivos, que foram alcançados por causa de um conjunto de iniciativas.

Dentre elas, destacam-se investimentos no sistema de Justiça criminal, que vinham ocorrendo desde o início dos anos 2000.

As UPPs (unidades de polícia pacificadora) também deram sua contribuição, sobretudo a partir de 2006. Estudos como "Os Donos do Morro" (2012), organizado por Ignacio Cano, Doriam Borges e Eduardo Ribeiro, e "Convivência, Conflitos e Mediações nas UPPs" (2017), de Barbara Musumeci Mourão, vieram mostrar que, não obstante as relações ambíguas em algumas localidades, o saldo do programa parece ter sido positivo.

Além disso, dois outros fatores favoreceram a injeção de recursos nas polícias e em áreas estratégicas para a segurança pública. De um lado, a receita aumentou com o ciclo de alta das commodities; de outro, grandes eventos esportivos atraíram investimentos.

Na Copa do Mundo, empregaram-se mais de 170 mil homens, entre segurança pública e privada. O aporte do governo federal, segundo estimativa do Ministério da Justiça, foi de R$ 1,9 bilhão. Para as Olimpíadas, desembolsaram-se outros R$ 350 milhões.

Para comparação, o Fundo Nacional de Segurança Pública gastou, de 2004 a 2011, entre R$ 200 milhões e R$ 400 milhões por ano em todo o país —com exceção dos R$ 630 milhões de 2007, quando se realizaram os Jogos Pan-Americanos.

Focado na cidade do Rio de Janeiro, esse dinheiro gerou um efeito perverso para o interior fluminense, que passou a concentrar a maioria das mortes violentas. Em 1994, 48,5% de todos os homicídios do Estado ocorriam na capital; em 2014, eram 25%.

DINÂMICA PRÓPRIA

Não basta, porém, analisar apenas os grandes números. Dentro da cidade do Rio de Janeiro, existe uma dinâmica espacial de diferentes tipos de crime. Embora no geral as taxas de homicídios tenham diminuído, elas permaneceram em patamares elevados em regiões como a Baixada Fluminense e em áreas socialmente segregadas na capital.

De certa forma, o que se vê agora é a expansão de uma criminalidade que nunca esteve superada. Ela apenas migrou de modalidade e lugar.

Os crimes patrimoniais, por exemplo, que na última década estiveram mais restritos a regiões centrais e voltados sobretudo a objetos como celulares, agora abrangem cada vez mais o roubo de cargas e os assaltos em áreas comerciais. A zona sul, onde esses delitos eram menos frequentes, agora experimenta uma onda de insegurança.

Diversos fatores podem ser apontados como responsáveis por essa dinâmica, dentre eles a desorganização social e a desordem. Nossas cidades são ambientes criminógenos, cuja compreensão escapa ao planejamento urbano.

Neste ponto, vale dar alguns passos atrás para relembrar um processo específico da cidade. A partir dos anos 1980, iniciou-se no Rio o que podemos definir como uma nova fase de estruturação da atividade criminosa. Foi um período de intensa competição entre facções, com uso massivo de armas de fogo -o que explica em boa medida os altos índices de homicídios no início dos anos 90.

Enquanto as rivalidades se acirravam entre as gangues, alianças foram feitas ou restabelecidas para fins de proteção dentro das prisões. Com isso, formou-se uma rede cada vez mais complexa de organização do crime nas ruas.

Ao mesmo tempo, a figura do policial violento e corrupto, que já existia na relação com os bicheiros nos anos 60 e 70, ganha maior destaque. A extorsão de bandidos passa a ocorrer de modo sistemático.

Dentro desse contexto, emergem as milícias, muitas das quais compostas de agentes de segurança. Formadas a princípio para proteção de moradores em comunidades pobres, elas se converteram em grupos que praticam extorsão e outros crimes —só que de forma mais estruturada e silenciosa do que as outras facções.

CRISE ECONÔMICA

Nos anos 2000, o fluxo de dinheiro para o Estado possibilitou a repressão de todas essas frentes criminosas. A atual crise das contas públicas, no entanto, corroeu a capacidade de resposta do aparato de segurança —algo que se repete em diversos centros urbanos do país.

No caso do Rio de Janeiro, a situação latente do domínio territorial por facções e seu nível sui generis de armamento expõem com mais clareza as fragilidades do sistema de segurança. O Estado fluminense, que já foi modelo de referência de projetos de restauração da ordem, assiste agora à deterioração progressiva das UPPs.

Os números foram eloquentes em demonstrar o sucesso delas, mas atestaram igualmente sua incapacidade de universalizar os benefícios para todas as áreas em que foram implementadas.

Os homicídios, que continuam fincados nas mesmas comunidades pobres e grupos sociais de sempre, estavam estancados em patamares bem mais decentes na última década, mas pularam mais de 20% ao longo de 2016 e 2017. Terminaram acompanhando a sempiterna deterioração dos crimes contra o patrimônio, um problema recorrente no Rio e em todas as outras grandes cidades brasileiras.

Para piorar, a questão não se esgota no aspecto conjuntural. As soluções sustentáveis na segurança pública também esbarram em problemas estruturais bastante sérios.

INSTITUIÇÕES

Um desses problemas diz respeito ao arranjo institucional determinado pela Constituição (artigo 144). Cabe à Polícia Civil a investigação, ao passo que à Polícia Militar compete fazer o patrulhamento ostensivo e a preservação da ordem pública.

Nas últimas décadas, não avançou nenhuma mudança em termos de integração e unificação das forças de segurança. Toda tentativa de reforma desse sistema dual terminou comprometida pelo corporativismo dessas organizações.

Essa rigidez institucional de nosso modelo de segurança deve-se às disposições constitucionais, mas, na prática, decorre também de uma diferença cultural entre as corporações: um insulamento militar em uma, um caldo jurídico na outra.

A baixa efetividade tanto na prevenção de crimes como em sua solução é um resultado esperado dessa fragmentação institucional. No Rio, a divergência entre a Polícia Militar e a Civil sempre foi muito acentuada, levando à execução de ações isoladas. Para completar, falta planejamento e sobra improviso, como se vê atualmente não apenas entre as polícias, mas também com o Exército.

Daí que uma camada a ser urgentemente reestruturada diz respeito à própria ação sistêmica da Justiça. Há uma mobilização cada vez maior de juízes e promotores que vêm adotando uma atitude pragmática e calcada em evidências para o controle do crime.

O processo notável de efetividade logrado pela força-tarefa da Lava Jato, particularmente no núcleo de Curitiba, foi obtido não só pela articulação entre Judiciário, Ministério Público e Polícia Federal, mas também pelo emprego de tecnologias e ferramentas legais como a delação premiada.

Contudo, este tipo de iniciativa ainda está muito longe de reverberar na ponta da Justiça criminal. De um lado, delegados, promotores e juízes nos Estados não estão afeitos à configuração usada na Lava Jato; de outro, ainda é preciso definir os mecanismos de controle e a base legislativa desse novo modelo de combate à criminalidade.

Nada disso está no horizonte dos congressistas -e, no curto prazo, provavelmente suas atenções continuarão voltadas ao imbróglio político e econômico em que nos encontramos.

A situação é grave: enquanto não enfrentarmos os gargalos estruturais, continuaremos sobrevivendo com remendos sucessivos que não têm nenhuma efetividade.

CLAUDIO BEATO, 60, sociólogo, é coordenador do Centro de Estudos em Criminalidade e Segurança Pública da UFMG e professor visitante Universidade Columbia (EUA).


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