Folha de S. Paulo


Tainá Müller conta como passou de assistente de direção a atriz principal

Acervo pessoal
Tainá Muller sentada ao lado de Julio Andrade no set de "Cão sem Dono" (Beto Brant e Renato Ciasca)

Porto Alegre, noite quente de verão de 2006. O garçom traz o que é provavelmente a minha terceira caipirinha.

Bebo com pressa, pois estou há muito tempo tentando criar coragem de falar para a Bianca Villar, produtora do filme "Cão sem Dono", que não poderei mais fazer a assistência de direção do longa prestes a ser rodado.

O motivo? Fui convidada para fazer parte da Oficina de Atores da Globo e, mesmo ainda sem experiência, tinha uma vontade enorme de ser atriz.

Viro mais da aguardente na boca e chamo Bianca para conversar fora do bar. Sinto-a tensa. Já havíamos percorrido um longo caminho de pré-produção até ali.

Eu tinha entrevistado, junto com os diretores Beto Brant e Renato Ciasca, algumas candidatas à personagem Marcela, protagonista feminina do filme. O processo de produção já estava intenso, e todos nós estávamos emocionalmente envolvidos.

Fomos para fora levando nossos copos. Tento manter a calma e conto a história toda: Leo Gama, na época uma espécie de caça-talentos da Globo, fez um teste comigo, disse que eu levava jeito e me chamou para a oficina. Ela cairia bem na época do filme e, quando expliquei a ele sobre o conflito de datas, Leo me perguntou: você quer ser atriz ou assistente de direção? Atriz, respondi de bate-pronto.

Mesmo assim, não era uma escolha fácil. Eu tinha uma baita admiração pelo Beto, e trabalhar com ele seria uma excelente oportunidade de aprendizado. Além disso, a história do filme me comovia e era difícil largá-lo.

Mas seria apenas mais um trabalho como assistente de direção —algo que já fazia havia três anos, desde o fim da faculdade de jornalismo, onde estudei bastante cinema— e, ao mesmo tempo, seria outro passo mais distante do meu sonho de atuar.

Quando eu dei a notícia para minha nova amiga, já estava preparada para sua cara de decepção.

Foi aí que, sem eu falar nada, num "turning point" para roteirista nenhum botar defeito, Bianca me surpreende: "E se você fizer a Marcela?".

Lembro até hoje o sotaque carioca impregnado na pergunta que me tirou o chão naquele momento. Não titubeei e aceitei.

Foi meu primeiro papel no cinema e minha primeira protagonista. A partir dali, no "tourbillon de la vie", tudo mudou. Vieram as filmagens, depois os festivais e então os prêmios.

Tive a oportunidade de pular de trás para frente das câmeras em grande estilo. Desde ali, já foram sete novelas e mais de dez filmes. Bianca, nesses anos todos, sempre esteve ao meu lado nos momentos mais importantes.

Até hoje, me surpreendo com a coragem dela ao apostar em mim. São poucas as pessoas que nos dão um voto de confiança assim ao cruzar nosso caminho. Os anos passaram e nossa relação transcendeu em muito o profissional.

Eu, que sou a irmã mais velha de mais duas, fui presenteada com uma supermulher de referência, que hoje é madrinha do meu filho. E também é coprodutora do meu projeto mais autoral, uma cinebiografia da escritora Hilda Hilst [1930-2004] ainda em gestação.

Se a gente ainda colecionasse aquelas agendas gordas da pré-adolescência, cheias de clipes, desenhos e papel de bala, eu escreveria para ela: "Bibi, a vida não é filme, mas a nossa amizade é de cinema!".

TAINÁ MÜLLER, 35, é atriz.


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