Folha de S. Paulo


Na Flip britânica, Margaret Atwood é tratada como profeta da era Trump

Darren Calabrese/The Canadian Press/Associated Press
A escritora canadense Margaret Atwood, autora da distopia "O Conto da Aia" (1985)

Em sua quarta edição, a FlipSide, versão britânica da Flip, voltou a ser realizada nos últimos dias 6, 7 e 8 após um intervalo de dois anos, no vilarejo de Snape. Foi mais uma festa literária deste ano em que as discussões sobre livros invariavelmente tomaram o rumo da política —a começar pela conferência de abertura, proferida pela escritora canadense Margaret Atwood.

Depois de ver a adaptação para a TV de seu romance "O Conto da Aia" (Rocco), "Handmaid's Tale" , dominar a premiação do Emmy, Atwood passou definitivamente àquela categoria de ficcionistas vistos um pouco como profetas. O romance, como se sabe, tenta imaginar como seria uma teocracia totalitária nos EUA.

O Conto da Aia
Margaret Atwood
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No bate-papo que se seguiu à palestra, a ideia de que a tomada do poder por Trump é o mais próximo que já se chegou de um fascismo à americana acabou sendo o tema principal.

A canadense, porém, preferiu ser comedida: "Trump não é a pior coisa que o mundo já viu. Pense em nós aqui, desfrutando de um agradável encontro literário, sem nos preocuparmos com bombas caindo sobre nossas cabeças". Se alguém acrescentou mentalmente um "por enquanto" ao final da frase, por certo não faria a observação em voz alta diante da mais influente escritora distópica contemporânea.

Foi até reconfortante ouvir Atwood falar sem alarmismo e com certo distanciamento de suas próprias criações assustadoras.

Consultora na versão televisiva de seu livro, revelou ter feito uma só exigência aos roteiristas: a nova história não deveria incluir nada que, nas três décadas desde o lançamento do romance, não tivesse ou pudesse ter acontecido. Foi como se dissesse: imaginação distópica também tem limites —ainda mais quando a realidade é capaz de inventar Trump.

FICÇÃO DE VERDADE

Um contraponto interessante partiu de Valeria Luiselli, autora mexicana radicada em Nova York. Ela decidiu viver a experiência de trabalhar como intérprete de crianças que estavam em processo de deportação após serem detidas desacompanhadas na fronteira dos Estados Unidos com o México.

Daí resultou um "ensaio em 40 perguntas" sobre esses "niños perdidos", expressão usada no título do livro em espanhol, que partiu do questionário que as crianças eram obrigadas a responder, com a ajuda de Luiselli, à autoridade de imigração.

"A questão era como transformar o capital emocional daquilo —a raiva que provocava— em capital político", disse a autora, que é também romancista. "Mas, ao mesmo tempo em que me parecia absurdo ficcionalizar uma situação assim, via como um dever de escritora trazer àquilo à vida, desafiar a linguagem da autoridade de imigração com a minha própria."

Esse dilema ecoou nas palavras da autora escocesa Ali Smith : "No mundo de hoje, querem fazer política no registro da ficção. Como se ficção fosse igual a mentir, quando o que ela faz é revelar verdades mais profundas".

Smith, cujo romance mais recente, "Autumn" (outono), foi saudado como a primeira ficção a tratar do 'brexit', prepara-se para lançar o segundo romance de uma tetralogia, "Winter" (inverno), novamente sobre acontecimentos recentíssimos no Reino Unido.

CRISE BRASILEIRA

A FlipSide ocorre no complexo cultural de Snape Maltings, conjunto de galpões cuja destinação original era o processamento de cevada (a região é famosa por suas marcas de cerveja e cidra). No pós-Segunda Guerra, o compositor Benjamin Britten começou a transformá-lo num dos centros de referência para a música erudita britânica.

O local fica a poucos quilômetros do mar, às margens do rio Alde, numa paisagem plana a perder de vista. Assim, a edição deste ano estava a uma distância segura das polêmicas que animaram a festa de Paraty, em julho.

No entanto, o jornalista mexicano Ángel Gurría-Quintana deu partida à mesa "Brasil em crise" lembrando que, três anos antes, o festival coincidira com o primeiro turno das eleições brasileiras. Passou, então, a enumerar o destino de cada um dos principais personagens daquele pleito.

A bomba de explicar, para uma plateia majoritariamente inglesa, o confuso enredo desde então ficou para os debatedores: o professor Vinícius Mariano, do King's College (Londres), e o jornalista Misha Glenny, autor de "O Dono do Morro" (Companhia das Letras), biografia do traficante Nem, da Rocinha.

Glenny não contemporizou: "Menosprezar que haja gente pedindo intervenção militar no Brasil pode ser desastroso".

CHRISTIAN SCHWARTZ, 42, pesquisador visitante na FGV e em Cambridge, é jornalista e tradutor.


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