Folha de S. Paulo


'Importância que eu dava para minha carreira quase evaporou', diz Meirelles

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Fernando Meirelles durante filmagem na Amazônia, em 2015

RESUMO O cineasta Fernando Meirelles fala de seu engajamento em causas ambientais, que começou com o plantio de mudas em sua fazenda e se transformou em ativismo público. Apoiador de Marina Silva, ele elogia celebridades, como Gisele Bündchen, que dedicam tempo e dinheiro à questão das mudanças climáticas.

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O cineasta Fernando Meirelles surpreendeu ao imprimir coloração verde —ecológica— à abertura da Olimpíada de 2016. Ele é adepto convicto do poder de grandes eventos e celebridades para fazer avançar a atenção do público para a mudança climática global, que vê como o maior problema do planeta.

Aos 61 anos, Meirelles trabalha atualmente com a produção de uma série para TV rodada na Europa –uma espécie de thriller político centrado no mundo da tomada de decisões de líderes globais.

Sua produtora, a O2 Filmes, também participou da montagem de "Eu Sou Amazônia", um pacote de 32 filmes, além de textos e mapas, que emprega uma nova ferramenta do Google Earth para mostrar que "a região só é viável com a manutenção da floresta em pé".

Esta entrevista por e-mail foi realizada na semana em que o presidente Michel Temer (PMDB) reverteu a controversa extinção da Reserva Nacional do Cobre e Associados (Renca).

Folha - Como e quando surgiu seu interesse pela Amazônia?

Fernando Meirelles - Tem gente que gosta de vinho, outras pessoas gostam de futebol, eu gosto de árvores. Há 12 anos, montei um viveiro para fazer mudas e recuperar matas ciliares de uma fazenda que tenho. Passei a colher ou comprar sementes e fui plantando espécies nativas.

Da mata ciliar para o interesse pelas florestas foi um pulo. Daí para a questão do aquecimento do planeta foi outro pulo. O próximo talvez seja para o abismo.

Tentar entender os vários lados das mudanças do clima transformou profundamente minha maneira de ver o mundo e minhas prioridades na vida. A importância que eu dava para a minha carreira, por exemplo, quase evaporou. Nada importa tanto quanto lidar com esta questão.

Em linguagem de "Game of Thrones", que todo mundo entende, vejo bilhões de pessoas focadas na guerra entre os Lannisters e os Tyrells, enquanto o inimigo já cruzou a muralha com seu dragão inclemente. "Summer is coming".

A extinção da Renca não afeta em princípio as sete unidades de conservação nem as duas terras indígenas que têm superposição com ela. Qualquer exploração ali terá de passar por licenciamento ambiental. Considera que a reação foi proporcional ao que de fato ocorreu?

Na Suécia teria sido desproporcional, aqui não. Se já existem 2.000 garimpeiros clandestinos por ali hoje, imagine quando abrir uma estrada. Seria uma explosão de conflitos, de invasão de terras indígenas e unidades de conservação.

Não dá para ser ingênuo e contar com licenciamentos. Se olharmos o entorno de Belo Monte em mapas de satélites dos últimos sete anos, fica claro o que digo. Ao ver as fotos anuais na sequência, parece uma ferida que vai sendo aberta no meio da floresta.

A ocupação acelerada levou para a região venda ilegal de madeira, crime, violência, crack e todo tipo de distúrbio dos grandes centros urbanos, mas não uma estrutura para lidar com eles. Quem se beneficia realmente de uma obra dessas? Quem se beneficiaria com a Renca?

Como não estamos prontos para ocupar uma região tão frágil e importante, o melhor é deixar como está, como um legado para os nossos netos. Um ato de generosidade histórica.

A evocação do desastre de Mariana no contexto da Renca lhe parece apropriada?

Bastante. A Renca seria ocupada por mineradoras. A preservação do meio ambiente não faz parte do DNA dessas empresas. Elas fazem pelo ambiente no máximo o que manda a lei, que, como vimos, são elas mesmas que pagam para serem escritas e aprovadas.

Mineração é necessária, mas é possível fazê-la de forma menos danosa se tivermos boas leis e sistemas de fiscalização. Vamos garantir isso primeiro e depois pensamos o que fazer. Por ora, o mais prudente é gritar.

Na Olimpíada, milhões de pessoas foram expostas a mensagens de cunho ambiental. Qual o saldo obtido, além das mudas nunca plantadas?

Não creio que os gráficos mostrados na abertura da Olimpíada tenham sido compreendidos, mas o ponto ali não era informar quantos graus o planeta aqueceu ou como a Flórida será inundada com o degelo do Ártico. Só o fato de o maior evento midiático do planeta trazer essa questão como tema central já ajuda a aumentar a percepção da gravidade do assunto. Ali, mais do que nunca, o meio era a mensagem.

Acabei de saber que falta um compromisso formal da Rio-2016 para o plantio das mudas da Olimpíada, mas o Marcelo Crivella (PRB) já disse que a prefeitura vai apoiar e que serão plantadas. Defendemos que seja em novembro, para pegar mais chuva após o plantio.

Gisele Bündchen fez um discurso piegas no Rock in Rio, misturando a questão ambiental com sonhos, amor, imaginação, mundo melhor etc. Não é despolitizar a questão?

Ela de fato está disposta a usar seu tempo, seu dinheiro e sua visibilidade por um mundo melhor, e o meio ambiente virou uma de suas maiores preocupações.

Não ouvi o que ela disse no Rock in Rio, mas sei que vai fazer uma fala sobre o tema na ONU, e seus tuítes sobre Amazônia repercutiram a ponto de Temer responder pessoalmente. A Gisele é uma voz que chega aonde outras vozes, como a da Folha de S.Paulo, por exemplo, não chegam.

Pela visibilidade que têm, celebridades podem prestar um importante serviço a essa causa. Dezenas de milhões de olhos se voltam para onde a Gisele passa, e o mesmo tanto de ouvidos escutam o que ela diz. Nesta era de "haters", é mais prudente ficar quietinho, por isso admiro quem põe sua credibilidade, seu tempo e seu dinheiro a favor do que acredita.

O que se pode fazer para melhorar a comunicação sobre mudança climática, uma vez que só apresentar dados científicos não tem resolvido?

Na verdade a informação científica está resolvendo, a mensagem está entrando aos poucos na cabeça de todo mundo. Cada furacão, queimada ou onda de calor é hoje noticiada estabelecendo uma ligação com o clima. O problema é que as mudanças estão acontecendo mais rápido do que a informação está chegando, e há uma urgência em mudarmos nosso modo de viver.

Minha aposta é que contar histórias é sempre uma boa maneira de informar. Por emocionar, ela faz a mensagem chegar a lugares, do cérebro ou do planeta, aonde a informação científica ou o jornalismo não conseguem chegar.

Você disse esperar que "Eu Sou Amazônia" provoque algum barulho neste momento de retrocessos da questão ambiental no Brasil, com a bancada ruralista aprovando na surdina leis que vão contra a preservação.

Esses caras adoram se retratar como heróis do Brasil, responsáveis por 22% do nosso PIB, mas vamos combinar que qualquer setor que receba R$ 200 bilhões por ano do nosso imposto, com uma taxa de juros de 8%, quando a Selic é 11%, e ainda conta com a excelência de uma empresa de pesquisa como a Embrapa, poderia fazer o mesmo.

A diferença é que eles são craques em lobby e em negociar votos no Congresso como moeda de troca. Assim como o PT foi acusado de aparelhar o Estado, a bancada ruralista vem fazendo o mesmo.

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Fernando Meirelles durante filmagem na floresta Amazônica, em 2015

A caatinga está mais ameaçada que a Amazônia, tem mais gente pobre morando lá e enfrenta seis anos seguidos de seca. Falta charme a esse bioma, o único inteiramente brasileiro?

Não há dúvida de que a Amazônia é uma vedete muito mais espetacular, com onças-pintadas, araras, açaí e sumaúmas. É duro competir. Não compreendemos muito bem a caatinga nem o cerrado. Talvez o cerrado seja a grande vítima da vez. No Matopiba, região que vai do Maranhão à Bahia, o cerrado está sendo substituído por soja.

Fugi da pergunta sobre a caatinga. Está certo, sabemos pouco sobre ela. Só pensei na ararinha azul.

Lula e Dilma também fizeram incursões danosas e bem mais concretas para a saúde do ambiente amazônico e planetário, de Belo Monte à exploração do pré-sal. Houve alguma reação contra a usina e quase nada contra o pré-sal. Por quê?

Belo Monte foi um desastre mais que anunciado, foi trombeteado. Mas Dilma não era muito de ouvir e adorava a ideia de hidrelétricas na floresta.

Quanto ao pré-sal, Lula teve a sacada, quero crer que com boa intenção, de associar sua receita à educação, e assim ganhou os corações e as mentes do país. Fora que a Petrobras é a queridinha e o orgulho dos brasileiros desde que o Getúlio criou o slogan mais introjetado no país, coisa que nem a Coca-Cola conseguiu com 70 anos de marketing: o petróleo é nosso.

A Petrobras deveria parar de vender suas áreas do pré-sal e focar em um plano de como fazer a transição para se tornar uma empresa campeã em energia solar, ou simplesmente planejar o final das operações, para não ser pega de surpresa.

Uma pesquisa de 2015 em dezenas de países indicou que no Brasil havia a maior proporção (86%) de pessoas que veem o aquecimento global como uma preocupação grave. Muitos acreditam que essa unanimidade sobre questões ambientais é superficial e inconsequente —como dizer que no Brasil não há racismo. Você concorda?

O fato de esse tema ser mencionado por 86% é bem melhor do que se fosse ignorado por 86%, mas de fato a distância entre intenção e gesto ainda é grande.

Há uma contradição entre se dizer preocupado com as mudanças do clima, mas comer carne dez vezes por semana. Ou você abre mão de alguns hambúrgueres, ou pare de dizer que se preocupa.

Estudos dizem que o hábito de comer carne é responsável por 15% dos gases de efeito estufa, fora ser também a principal causa de desmatamento da Amazônia.

Você costuma dizer que a Amazônia parece muito longe para os brasileiros, que precisariam descobrir suas conexões com a floresta e repensar seus hábitos de consumo ou suas opções políticas.

Ninguém consome impunemente. Ir a pé ou de bicicleta é melhor do que usar transporte público, que é melhor do que usar carro, que é melhor se for abastecido com etanol. Essas escolhas fazem diferença, mas, no caso das mudanças climáticas, por mais que mudemos hábitos, as decisões que podem realmente mudar o jogo estão nas mãos do Estado.

Troca de matriz energética, incentivo a fontes de energia limpas, financiamento de agricultura de baixo impacto e empenho na recuperação de áreas degradadas são ideias que dependem da vontade do poder público.

No Brasil, essa não tem sido a pauta dos últimos governos. Escolher candidatos ou partidos comprometidos com essas ideias fará muita diferença para nosso futuro.

O único partido brasileiro que considera essas questões seriamente em seu programa é a Rede, por isso apoio Marina Silva e o partido.

MARCELO LEITE, 60, é repórter especial e colunista da Folha.


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