Folha de S. Paulo


Biografias e textos de época jogam luz sobre figuras de Lênin, Trótski e Stálin

Kirill Kudryavtsev/AFP
Apoiadores do partido comunista russo seguram retratos de Josef Stálin (esq.) e Vladimir Lênin

RESUMO Autor do livro "Do Czarismo ao Comunismo" escreve sobre quatro obras que ajudam a entender as origens, o desenvolvimento e o legado das revoluções russas —assim mesmo, no plural. Uma coletânea de textos de época e biografias de Lênin, Trótski e Stálin compõem o mosaico sobre o turbilhão do início do século 20.

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Do Czarismo ao Comunismo
Marcel Novaes
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O século 20 jamais será bem compreendido por quem não conhecer a história da Revolução Russa e suas consequências.

Da criação da União Soviética ao desenvolvimento da Guerra Fria, do avanço do comunismo à instauração de ditaduras na América Latina, da Revolução Chinesa ao Muro de Berlim, são muitos os acontecimentos dos últimos cem anos que só podem ser entendidos à luz das transformações impelidas por Lênin e companhia.

A história da Revolução Russa, por sua vez, não pode ser bem compreendida sem se levar em conta que, na verdade, suas revoluções —no plural— ocorreram ao longo de mais de uma década.

A Rússia entrou no século 20 como um caldeirão de insatisfações. O governo centralizado, uma monarquia absolutista que já durava 300 anos, tinha cada vez mais dificuldade para abafar um sem-número de problemas. Havia a questão das nacionalidades (demandas de dezenas de etnias e culturas do império) e a da política (faltava representatividade), a causa dos operários (que trabalhavam em péssimas condições) e a dos camponeses (milhões de despossuídos em meio a poucos nobres latifundiários).

A economia ainda era majoritariamente agrária e arcaica, mas a industrialização se apressava. Apesar das inevitáveis mudanças na estrutura da sociedade, o czar Nicolau 2º não estava disposto a fazer nenhuma reforma e prometeu governar como seus antepassados: de forma autocrática. Foi um erro.

O caldo começou a ferver durante a guerra com o Japão (1904-05), da qual a Rússia saiu humilhada internacionalmente e com a economia interna deprimida.

A temperatura subiu ainda mais com um grande protesto em janeiro de 1905. Manifestantes pretendiam entregar ao czar uma petição que continha, entre outras coisas, apelos por uma Assembleia Constituinte e uma jornada de trabalho de oito horas. Quase 100 mil pessoas foram recebidas a bala.

Conhecido como Domingo Sangrento, o evento desencadeou uma onda de greves que paralisou o país –trata-se da famosa "greve geral" que, desde então, tornou-se praticamente um mito da extrema esquerda. Em seguida, camponeses também fizeram seus levantes.

Diante do que pode ser considerada uma primeira revolução russa, Nicolau 2º assinou o Manifesto de Outubro, pelo qual estabelecia um órgão legislativo eleito pelo povo, a Duma.

Com isso, atendia parcialmente sua oposição política, que incluía liberais —defensores de uma república democrática ou de uma monarquia parlamentar— e socialistas de diversas correntes (entre os quais estavam os mencheviques e os bolcheviques).

Cambaleante, a Rússia trilhava o caminho da democracia. O percurso, porém, foi interrompido pela Primeira Guerra Mundial (1914-18). Nada menos do que 15 milhões de homens serviriam no exército russo de 1914 a 1917.

Cerca de 2 milhões morreriam, e outros 5 milhões seriam aprisionados. O esforço fez colapsar a economia e o abastecimento. A revolta popular se reacendeu até o ponto de ebulição.

REVOLUÇÃO VERDADEIRA

Em fevereiro de 1917, ocorreu a verdadeira Revolução Russa. O Dia Internacional da Mulher (23/2 pelo calendário então usado na Rússia) começou em São Petersburgo (a capital à época) com protestos contra o racionamento.

Milhares de operários reforçaram as passeatas. Lojas e fábricas foram fechadas, bondes pararam de circular. Quando a polícia impediu os manifestantes de cruzar as pontes que levam ao centro da cidade, eles atravessaram pelo rio congelado, cantando a Marselhesa.

Rafa Campos
Ilustração de Rafa Campos

O livro "Manifestos Vermelhos - E Outros Textos Históricos da Revolução Russa" [trad. Erick Fiszuk, Penguin Companhia, 308 págs., R$ 44,90, R$ 29,90 em e-book], organizado por Daniel Aarão Reis, é muito feliz em transmitir a atmosfera daqueles dias: um ambiente confuso em que algo novo parece nascer, mas as pessoas ainda se debatem na incerteza.

O livro reúne discursos, memorandos, atas, cartas e artigos de jornal, além de alguns poemas e músicas, boa parte traduzida diretamente do russo pela primeira vez. Chama a atenção o testemunho de um jovem soldado, que deixou registradas suas impressões sobre os eventos de fevereiro em Moscou:

"As pessoas começaram a se abraçar e a se beijar, estranhos tornavam-se amigos íntimos (...) uma garota bonita veio até mim e me pegou pela mão (...). Pela primeira vez em minha vida, senti essa atmosfera de júbilo, na qual cada pessoa que você encontra parece ser muito próxima (...) [A garota,] como se estivesse falando consigo mesma, de repente disse: 'Como seria bom se amanhã houvesse outra revolução!'".

O czar não resistiu. Abdicou do trono, e a Rússia deixou de ser uma monarquia. Em que se transformaria? Não estava claro. O poder foi dividido entre os sovietes (conselhos formados por trabalhadores eleitos) e um governo provisório indicado pela Duma, que seria responsável por conduzir o país e o esforço de guerra até a convocação de uma Assembleia Constituinte.

O percurso, entretanto, foi mais uma vez interrompido —não por uma guerra, mas por um grupo de radicais até então irrelevante: os bolcheviques. Seu líder, conhecido como Lênin (1870-1924), retornara do exílio em abril e passara a pregar que se entregasse "todo o poder aos sovietes".

Outra figura de destaque, Trótski (1879-1940), tornou-se presidente do Soviete de Petrogrado (como a capital passara a se chamar) em setembro.

Em uma das cartas de Lênin, reproduzida em "Manifestos Vermelhos", ele está às portas do desespero: "Camaradas! Escrevo estas linhas no fim da tarde do dia 24 [de outubro], e a situação é a mais crítica possível. Está mais do que claro que agora qualquer demora na insurreição é realmente a morte (...) não podemos esperar!! Podemos perder tudo!!".

BOLCHEVIQUES

Mas quem eram, o que queriam, o que fizeram os bolcheviques? Três outros lançamentos recentes jogam luzes sobre essas questões.

Em oposição à grande maioria dos socialistas, Lênin acreditava que o proletariado deveria tomar o poder imediatamente e construir sua famosa ditadura, abrindo caminho para o comunismo.

As teorias leninistas sobre a sociedade russa, o capitalismo, o imperialismo, o Estado e a revolução são discutidas em "Reconstruindo Lênin" [trad. Baltazar Pereira, Boitempo, 608 págs., R$ 89], de Tamás Krausz, uma biografia quase que puramente intelectual, na qual as ideias têm precedência e os fatos históricos são apresentados por alto.

Discorrendo em detalhes sobre os debates de Lênin em torno de todo tipo de questão, o livro terá interesse apenas para os leitores realmente ávidos por uma discussão cuidadosa do leninismo, em perspectiva histórica.

Seu autor, ativista de esquerda e ex-membro do Partido Socialista da Hungria, não esconde a simpatia e a admiração pelo biografado. O máximo de crítica que se permite fazer é apontar uma ou outra contradição no pensamento do líder bolchevique, ressalvando que se deviam a "relações históricas concretas que não podiam ser transcendidas à época".

Em outubro de 1917 (ou novembro, pelo calendário atual, o gregoriano), os bolcheviques orquestraram a sua própria revolução. Mais precisamente se diria um golpe, já que o povo nem sequer notou o que se passava enquanto militantes armados, durante a madrugada, apoderavam-se das estações ferroviárias, da central elétrica, dos arsenais, dos entrepostos de abastecimento etc.

Ao longo do dia, o Palácio de Inverno, sede do governo, foi cercado e invadido.

A tomada do poder foi comunicada ao Congresso Pan-Russo de Sovietes, que iniciava suas atividades naquele mesmo dia. As outras correntes socialistas se opuseram ao golpe bolchevique e propunham alguma acomodação.

TRÓTSKI

Coube a Trótski responder, com sua costumeira verve: "O que aconteceu foi uma insurreição e não um complô. O levante das massas populares não necessita de justificativas. ("¦) Nossa insurreição venceu e agora apresentam-nos uma proposta: renunciai à vossa vitória, concluí um acordo. Com quem? ("¦) Não há mais ninguém ("¦) Aqui o acordo de nada vale! Aos que se apresentam com tais propostas, devemos dizer: sois lamentáveis isolados, sois uns falidos, vosso papel aqui acabou, voltai ao lugar onde vossa classe se encontra para sempre: a lata de lixo da história!".

"Trótski, uma Biografia" [trad. Vera Ribeiro, Record, 770 págs., R$ 94,90], de Robert Service, acompanha de perto a vida de seu personagem principal, sem dedicar muito espaço à discussão de suas ideias.

Inicialmente próximo dos mencheviques, Trótski manteve grande independência intelectual e lutou pela unificação das tendências socialistas, ainda que pessoalmente nunca tenha encontrado muito sucesso como agregador.

Depois de os bolcheviques assumirem o poder, teve papel de destaque tanto como negociador da paz com os alemães em Brest-Litovsk (1918) —o fim da participação russa na Primeira Guerra era uma demanda popular— quanto como estruturador e comandante do Exército Vermelho durante a guerra civil, que se alastrou pelo país quando diferentes forças buscaram dar o contragolpe interno.

No governo, os bolcheviques logo começaram as reformas que eram bandeiras históricas: nacionalização de fábricas e instituição do controle pelos operários, distribuição de terras, veto ao ensino religioso nas escolas, cancelamento das dívidas do regime czarista.

A princípio, a economia passou ao controle do Estado, com metas de produção e posterior confisco para distribuição. Essa política, conjugada a secas e às dificuldades associadas à guerra civil, resultou em inflação e escassez de alimentos.

TROCA DE GUARDA

Lênin, então, viu-se obrigado a mudar a orientação, introduzindo um regime de economia mista, protocapitalista, que ficou conhecido como a Nova Política Econômica.

Como escreve Krausz, "a NEP significou a substituição da produção militarizada (...) por dinheiro e condições de mercado, reinstituindo o livre-comércio e introduzindo impostos em espécie", mas "o governo soviético implementou (...) a NEP sob a pressão das circunstâncias, das exigências e das necessidades concretas" –ou seja, fugindo do curso previsto para a evolução do socialismo.

Lênin morreu em 1924, e sua sucessão foi marcada por um acirramento das rivalidades. Stálin (1878-1953) e Bukharin (1888-1938) defendiam a continuação da NEP, Trótski e outros pregavam o retorno à ortodoxia socialista. Stálin, para isolar Trótski, aliou-se a Kamenev (1883-1936) e Zinoviev (1883-1936), antigos parceiros de Lênin. Mais tarde, livrou-se dos dois.

A história é contada em detalhes em "Stálin - Paradoxos do Poder, 1878-1928" [trad. Pedro Maia Soares, Objetiva, 1.112 págs., R$ 119,90], de Stephen Kotkin, o primeiro volume de uma planejada trilogia. Longo e minucioso, o livro também pode ser lido como uma história da Rússia antes, durante e depois de suas revoluções.

Sossó, como Stálin era chamado quando criança, viveu no interior da Geórgia, na periferia do império. Seus primeiros anos não foram especialmente marcados por violência e opressão, como já se pensou.

Kotkin deixa claro que é falsa a visão —originada com Trótski— de que Stálin era uma nulidade burocrática e mostra que suas várias qualidades (trabalhador incansável, grande talento organizacional, dedicação aos estudos e desejo por se destacar) levaram Lênin a concentrar nele muitas responsabilidades ao longo da guerra civil e na organização do novo governo.

O sucesso de Stálin não se explicaria simplesmente por ele ser manipulador ou psicopata; ele não era mais autoritário ou inescrupuloso que a maioria de seus colegas bolcheviques. O autor prefere enfatizar, além da capacidade de trabalho e "[]":http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2017/08/1911012-o-marxista-pachukanis-e-o-direito-visto-como-coisa-de-burgues.shtmlda inteligência, o fato de que, pelo menos no começo, Stálin fazia questão de cativar lealdades e promover os mais capazes.

Kotkin põe em dúvida o famoso testamento no qual Lênin, praticamente incapacitado por derrames, expressou dúvidas sobre a permanência de Stálin no poder. A argumentação é convincente, mas não fica claro quem poderia ser o responsável pela falsificação —se houve uma, de todo modo, ela não surtiu o efeito desejado.

SEM ALTERNATIVA

É digno de nota que, em 1927, as reuniões do Comitê Central do partido ainda continham discussões acaloradas. Em uma delas, Tróstki diz que Stálin é "rude e desleal"; Stálin o chama de "patético" e "covarde".

A partir da década de 1930, seus caminhos nunca mais iriam se cruzar. Trótski seria exilado, passando por Turquia, França, Noruega e, enfim, México. A leitura de "Trótski, uma Biografia" sugere que o trotskismo permaneceu um movimento político mundial sem muita influência concreta.

As análises de Trótski sobre a realidade soviética no início dos anos 30 eram escritas com base no que ele lia em jornais. Vistas por alguns como alternativa ao stalinismo, não passavam de vagos apelos para que os trabalhadores fossem ouvidos, para que a autocracia burocrática desse lugar à democracia soviética e para que houvesse uma ressurreição dos sindicatos.

Tais afirmações soam vazias quando se sabe que Stálin também dizia defender uma democracia soviética e que Trótski se empenhara, anos antes, para que os sindicatos se subordinassem ao governo.

Segundo Robert Service, por suas ações e pelas ideias que defendeu até ser exilado, Trótski não era alternativa ao modelo stalinista.

O livro foi criticado pelo evidente ânimo antitrotskista, mas ele tem bons motivos para sustentar sua tese. Por exemplo, em 1938, Trótski escreveu que "o proletariado (...) deve estar inteiramente livre das ficções da religião, da 'democracia' e da moral" e que "somente aquilo que prepara a derrubada completa e final da bestialidade imperialista é moral, e nada mais. O bem-estar da revolução —é esta a lei suprema".

Ainda que Service possa ter razão nesse ponto, seu livro tem defeitos. O biografado é adjetivado continuamente (vaidoso, egocêntrico, exibicionista) e apresentado com contradições: ora Trótski não gostava de perder tempo em reuniões, ora adorava discussões e refletia pouco.

Repete-se inúmeras vezes que era vaidoso, mas também que havia "uma cativante modéstia em Trótski" e que "não gostava de se gabar". Em uma crítica devastadora, o historiador Bertrand Patenaude afirmou ter encontrado dezenas de erros factuais no livro.

SOPA IDEOLÓGICA

Ao contrário de Trótski, Stálin permaneceria no poder até sua morte, em 1953.

O primeiro volume de Kotkin acompanha sua história até 1928, quando o governo soviético teve de lutar para conseguir grãos que alimentassem as grandes cidades do país, montando uma operação de guerra, com pesadas punições a quem não cumprisse cotas. Os germes da coletivização da terra começavam a se desenvolver.

"A variedade da pequena unidade familiar é uma desgraça para um país grande", disse Stálin, lamentando que pequenas propriedades plantassem um pouco de tudo, sem usar mecanização ou fertilizantes.

"Somos um país soviético, queremos implantar uma economia coletiva." O desafio de coletivizar o campo era enorme; a história completa —que levou 40 milhões de pessoas à fome— será contada no segundo volume.

Kotkin termina com uma avaliação crítica: "No caso soviético, para qualquer um que não esteja irremediavelmente afundado na sopa ideológica, os eventos proporcionaram uma ampla oportunidade de refletir e reconhecer a extrema necessidade de sair do beco sem saída leninista, abandonar a abordagem autodestrutiva da luta de classes, aceitar o mercado como não inteiramente mau, incentivar agricultores prósperos a continuar e ajudar os outros a se erguer".

Cada um a seu modo, esses livros ajudam a compreender o fenômeno das revoluções russas. Convém estudá-los antes de exclamar ao lado da mocinha deslumbrada de Moscou: "Como seria bom se amanhã houvesse outra revolução!".

MARCEL NOVAES, 39, é professor e autor de "Do Czarismo ao Comunismo - As revoluções russas do início do século XX" (Três Estrelas).

RAFA CAMPOS, 47, é ilustrador e cartunista.


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