Folha de S. Paulo


Aos 14 anos, bailarino se escondeu em teatro para ver espetáculo com nudez

Sammi Landweer
Lia orienta Volmir em ensaio de "Aquilo de que Somos Feitos", em 2008

Estamos em 2001, tenho 14 anos e vivo em Concórdia, pequena cidade do oeste catarinense. Ali, não há variedade na programação cultural: ou temos as poucas estéticas experimentais que vêm de fora ou os folclores locais.

Eis que, em uma dessas "aparições contemporâneas exógenas", vem até a cidade a Lia Rodrigues Companhia de Danças, do Rio de Janeiro, com o espetáculo "Aquilo de que Somos Feitos", criado em 2000.

Nele, público e intérpretes estão no palco, juntos. Não há distinção evidente entre o espaço cênico e o da plateia.

Na primeira parte, os intérpretes estão nus e fazem esculturas vivas com seus corpos, sozinhos ou imbricados uns nos outros. Tudo é muito lento e não há música.

Na segunda, o público se posiciona no entorno de um quadrado e, num clima anos 70, os intérpretes, agora vestidos, dançam em tom de manifesto, embebidos de agressividade política. O público de Concórdia se desestabiliza; ri, gargalha, não consegue olhar, estranha, deixa a peça.

Eu aprecio a reação do público de um ponto de vista bastante particular. Enquanto todos estão no palco, estou escondido embaixo das cadeiras vazias do espaço destinado à plateia do Teatro Municipal Maria Luiza de Matos.

Explico: pelo fato de os bailarinos estarem nus em cena, a delegada responsável pela proteção dos menores da cidade impediu a entrada daqueles que ainda não tinham 18 anos. Naquele momento, eu tenho 14 e muita vontade de ir ao teatro. Desde os sete, não perco nenhum espetáculo que ali chega.

Não queria perder a peça que veio do Rio, um espetáculo de dança contemporânea, essa misteriosa categoria que eu nem sabia o que podia ser e já me causava uma curiosidade furiosa.

Sendo assim, três horas antes do espetáculo, desço até o palco e encontro Lia e sua companhia. Converso com eles, narro o episódio de censura e minha grande vontade de ver a peça.

Sem hesitar, me acolhem calorosamente, dizendo para eu ficar ali, porque iriam dar um jeito. A peça começa e me vejo diante de uma escultura política brava e ruidosa, enfeitiçado. Queria fazer parte daquilo, sentir o corpo como disponibilidade aberta, vibrante, exposta.

"Aquilo de que Somos Feitos" impulsionou meu desejo de partir, confirmou minha vontade de seguir com as artes cênicas, abriu as possibilidades para uma vida de artista. Fui embora aos 17 anos para Florianópolis.

Em 2008, aos 21, faço audição para entrar na companhia da Lia —é praticamente uma residência ou um estágio, durando quase um mês. Em abril, me mudo para o Rio. A companhia está fazendo 20 anos de existência e, no ano em que chego, retoma as peças de seu repertório para turnês nacionais e internacionais.

Começo a dançar "Aquilo de que Somos Feitos", a aprender a coreografia. Adentro sua estrutura, tanto quanto mergulho na memória de espectador adolescente, aquela situada no teatro de Concórdia. Memória deslocada e transformada.

Cada vez que entrava em cena, lembrava o menino escondido, impedido, e expulsava a censura por meio do movimento, pelo gesto e pela força de ser o corpo que queria ser quando vi pela primeira vez o espetáculo. Um corpo descoberto, sem amarras, metamorfose constante e nu de identidade fixa.

Para mim, a dança tem disso: ela oferece a possibilidade de inventar um corpo, um mundo, um modo de ser específico, que não aqueles que se distribuem por aí, nas centrais de valores globais.

Com Lia, entendi que um gesto dançado não é só efemeridade pura, mas tem potência de inscrição nos nossos corpos e pode reclamar sua existência tardiamente.

Fico na companhia até 2011, um pouco antes de me mudar para a França e começar minha carreira de coreógrafo. Alguns meses depois, crio "Céu", meu primeiro solo, e reconheço nesse trabalho a tentativa de interpretação da vitalidade encontrada na companhia de Lia. Mais uma vez, a dança me prova que seu impacto pode ter uma vida longa, se desejarmos.

VOLMIR CORDEIRO, 30, coreógrafo e bailarino, criou o tríptico de solos "Céu", "Inês" e "Rua" e finaliza doutorado em arte do espetáculo na Universidade Paris 8.


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