Folha de S. Paulo


Lúcia Murat apresenta thriller sobre violência no Festival do Rio; leia trecho

Visca
Ilustração de Rodrigo Visca para a Ilustríssima

SOBRE O TEXTO O trecho abaixo é parte do roteiro de "Praça Paris", filme dirigido por Lúcia Murat que estreia no Festival do Rio no sábado (7/10). A obra explora o conflito entre a psicanalista portuguesa Camila (Joana de Verona), que veio ao Brasil estudar violência, e sua paciente Gloria (Grace Passô ), que vive na pele o cotidiano do morro.

*

EXT. DIA/PRESÍDIO

(Vista geral do presídio. Detalhe da porta principal. Gloria está numa fila de pessoas esperando que o portão abra. Chega a vez de Gloria.)

GUARDA Nome do preso.

GLORIA Jonas Santos.

GUARDA Jonas Santos. Visita cancelada, senhora.

GLORIA Mas cancelada por quê?

GUARDA Eu sei lá, senhora, visita cancelada!

GLORIA Não, mas por que, pô?

(O guarda retira Gloria da fila.)

GUARDA Próximo. Nome do preso?

(Gloria se afasta e fica sem saber o que fazer.)

EXT.TARDE/MORRO DA PROVIDÊNCIA

(Gloria sobe o morro e olha. O policiamento está muito mais ostensivo. Mais policiais e mais armas. Ela sobe pelas escadarias e cruza com um grupo de policiais da UPP armados com metralhadoras, apontando para os moradores, olhando para o lado assustados enquanto descem.

Um dos PMs aponta para Gloria e faz sinal para outro. Ele vai até Gloria, segura nos braços dela e a leva até a sede da UPP.)

INT. TARDE-NOITE/SALA DA UPP

(Gloria está sentada numa cadeira. Um policial joga um copo de água nela. Ela se assusta. Ela sabe o que vai acontecer.)

POLICIAL 1 E aí? Quem é que tá levando informação lá pro seu irmão? Num sabe?

GLORIA Não.

POLICIAL 2 Você não sabe nada?

GLORIA Não.

POLICIAL 2 Vai, caralho, começa a falar aí, vai! Vai que você sabe. Quem que tá levando informação pro seu irmão?

GLORIA Não sei.

POLICIAL 1 Fala, filha da puta! O cara está perguntando, porra! Você vai falar tudo que eu quero saber. Não foi teu irmão? Foi quem? A Madre Teresa de Calcutá, caralho?

(Os PMs continuam gritando com ela. Não se vê o que acontece com Gloria.)

INT. NOITE/IGREJA EVANGÉLICA

(Gloria, com o rosto todo machucado está ao lado do pastor, que reza fazendo um "livramento".)

PASTOR Senhor, amarre todo o mal, derrube por terra todo o mal. Amarre, meu Pai, é teu pastor, é tua ovelha que pede misericórdia, Senhor. Gloria não pode pagar pelos pecados de seu irmão Jonas, meu Pai. Amarra! Derrama sua misericórdia sobre nós, Senhor. Em nome de Jesus, eu te imploro, Senhor, é seu pastor que pede em nome de Jesus. Amém!

GLORIA Amém!

PASTOR Senta, Gloria. Senta aqui, vem.

GLORIA Obrigada, pastor. Escuta, pastor, eu sei que é pedir muito depois de tudo que o senhor fez por mim, eu sei, mas eles proibiram as visitas pro meu irmão. Eles estão falando que ele que é o culpado pelos tiroteios aqui do morro, mas ele não é não. Eu juro que ele mudou. Ele é outro, pastor, acredita em mim.

PASTOR Gloria, só Deus pode transformar as almas impuras.

GLORIA Eu sei...

PASTOR E eu acredito nele. Você acredita nele?

GLORIA Eu acredito. Eu acredito, pastor. Será que o senhor não consegue uma visita? Saber se ele tá bem? Levar a palavra de Deus pra ele, pastor, por favor.

PASTOR Gloria, eu vou visitar seu irmão, mas é em pensamento, em oração. Pedir pra Deus derramar sua misericórdia sobre ele, pra que ele volte pro caminho certo. Eu vou clamar por misericórdia e você vai fazer o mesmo. Você vai pedir pelo seu irmão, em nome de Jesus. Amém!?

GLORIA Amém.

INT. DIA/CONSULTÓRIO DE PSICANÁLISE

(Close em Camila, que não sabe bem o que fazer diante de Gloria com o rosto machucado, claramente agredido. Ela oferece um copo de água para Gloria.)

CAMILA Eu lamento muito, Gloria. Isso é um absurdo! Eu não sei nem o que dizer, isso é um absurdo. Isso não pode ficar assim. Você tem que denunciar. E a universidade pode ajudar você nisso. Você não precisa ter medo.

GLORIA Universidade?

CAMILA Sim!

GLORIA Universidade, doutora?

(Gloria toma um gole da água, para um pouco e dá um sorriso.)

GLORIA Você sabe que outro dia eu sonhei com você? Não, melhor, bem melhor. Eu sonhei que eu era você.

(Camila fica um pouco espantada.)

CAMILA E foi?

GLORIA Foi.

CAMILA E como é que era o sonho?

GLORIA Eu falava igual a ti. É, com esse sotaque, desse jeitinho mesmo. E era rica e bonitinha. Como se a gente tivesse, tipo, trocado de lugar. Sabe? Eu aí e você aqui. Mas você não ia querer ter minha vida, ia?

CAMILA É difícil porque nós de fato... Nós não podemos escolher ter a vida dos outros.

GLORIA E eu, como a doutora, eu me enxergava igual a um bicho de zoológico. Porque é assim que você me enxerga, não é? Um bicho de zoológico?

CAMILA É assim que você se enxerga? Quando você olha pra você mesma através do meu ponto de vista, é isso que você vê? Um bicho?

GLORIA Bicho são todos, doutora, todos. A polícia, o tráfico, eu, você, todo mundo é bicho. Então não te preocupa não, que essa porrada aqui não ficou à toa, não. Sabe o que aconteceu? O pessoal foi lá e metralhou o posto da UPP. É... Um ficou ferido e outro morreu.

(Gloria faz uma pausa e continua com uma provocação.)

GLORIA E eu fiquei feliz, muito feliz. Tu é contra vingança? Mas é assim que acontece, é assim que funciona. Ainda acha que eu devo denunciar? Acha?

*

LÚCIA MURAT, 68, cineasta e roteirista, dirigiu "Que Bom te Ver Viva" e "Quase Dois Irmãos".

RAPHAEL MONTES, 27, escritor e roteirista, é autor de "Suicidas" e "Jantar Secreto" (Companhia das Letras).


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