Folha de S. Paulo


Leia dois poemas de antologia inédita do carioca Ismar Tirelli Neto

SOBRE O TEXTO A "Ilustríssima" adianta um par de poemas que integrarão a antologia "Alguns Dias Violentos", ainda sem data de lançamento. O autor carioca já assinou as compilações "Ramerrão" (2011) e "Os Ilhados" (2015), ambas lançadas pela 7Letras.

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Fosse isto um relato de passos que vão dar a uns pés, a uma prática.

Ando esquecendo coisas imprescindíveis. Que nomenclatura caminho, sobre o rosto de quem. "Tendões", "artelhos". Todos aqueles ossos tão exatos, que sempre soubemos, visionamos exatos. É desta exatidão que fraquejam. Caem. Há um poço, é claro que há. Nada vem ocupar as bocas que deixam abertas, que trajamos no vento, na esquina. Um poema. A amplidão das esquinas, aqui como lá, sempre imprevistas. É de surpreender que estejamos tão eretos.

Abarcar com dois passos para trás. Esta é a curva da boca, demissionante, foi aqui que me fixei. Meu novo endereço. Não mais fechado em montanhas. Dois anos: alguma mundanidade. Esta a louça por lavar, esta a vitrola, estes os caixões, as alças que voltam às mãos quando ergo as sacolas do supermercado.

É um poema. Vestir apenas a boca aberta, vestir apenas a troca de guarda, uma esquina que dá repetidamente no espaço, cábula precisão. É um poema. A raspagem no cimento. O que se pode fazer sem palavras. Os dois passos para trás.

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"Esta é mesmo a forma mais livre", repito. Arruada assim. Limites claros e formuláveis. O restaurante onde venho almoçando todos os dias nos últimos meses. A farmácia. A tabacaria. O mercado. Os vizinhos. A praça sobrelevada. A pele. A piscina pública, interrompida antes de minha chegada.

Chegar. Desencaminhar-se. Em meio a tudo isto que já se desencaminhou. Restaurante. Lavanderia. Banco. Casa lotérica. Mesmo que haja uma história, não há mesmo garantia de que ande comigo, não há garantia de que caminhe a meu lado.

Então, são as ruas que se aduncam... Ou ciliam-se... Torna-se possível falar da "compleição" de umas paredes, destas, encontrar passos no anódino azul em que se mostram.

Passam os passos. Metem-se por mim à entrada do restaurante. É onde devo, forçosamente, me encontrar. Já não causa espécie a ninguém que isto tudo seja inteiramente ao acaso.

Adriana Conti Melo
Ilustração de Adriana Conti Melo para a Ilustríssima

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ISMAR TIRELLI NETO, 32, poeta, é autor de "Os Ilhados" e "Ramerrão" (7Letras).

ADRIANA CONTI MELO, 52, é artista visual.


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