Folha de S. Paulo


Assim como nos EUA, estátuas geram disputa política em Buenos Aires

Juan Mabromata/AFP
A então presidente Cristina Kirchner participa de evento ao lado de Mauricio Macri em 2014

Entre maio e novembro de 1976, funcionou numa antiga oficina de automóveis, a Automotores Orletti, um dos mais temidos centros clandestinos de detenção da última ditadura militar da Argentina (1976-1983).

Localizado no bairro portenho de Floresta e apelidado de El Jardín, o local destinava-se à prisão, tortura e morte de "subversivos" uruguaios, paraguaios e chilenos detidos pelos "grupos de tarefas" argentinos dentro do contexto da Operação Condor (colaboração entre as ditaduras do Cone Sul).

A chamada causa Orletti era um dos últimos julgamentos coletivos ainda sem conclusão desde que, em 2003, o então presidente Néstor Kirchner (1950-2010) aboliu indultos e anistias e determinou que a Justiça passasse a investigar todos os crimes cometidos pelo Estado.

Na última semana, a causa Orletti foi encerrada, com a condenação de quatro ex-militares. Eles foram acusados de "tortura e homicídio num contexto de genocídio" e receberam penas de 6 a 25 anos.

Pela lei argentina, hoje só é possível julgar os crimes cometidos pelas forças do Estado, pois eles são considerados pelo Estatuto de Roma como crimes de lesa-humanidade, o que os torna imprescritíveis.

Apesar da reclamação de grupos de familiares de vítimas da guerrilha, os assassinatos cometidos por civis que não foram julgados até 15 anos após o delito já não podem ser punidos, pois se considera pela legislação local que prescreveram.

De 2003 para cá, mais de 700 ex-repressores foram julgados e cumprem penas em cárceres comuns.

ESTÁTUA VAI, ESTÁTUA VEM

Não é só nos EUA que as estátuas de próceres provocam divisão. Na Argentina, mais um episódio dessa novela acaba de ocorrer, com a retirada da figura de Juana Azurduy (1780-1862) da praça atrás da Casa Rosada, sede do governo argentino.

Nascida em território que hoje pertence à Bolívia, Azurduy foi uma guerreira indígena que lutou pela independência do Vice-Reinado do Rio da Prata.

A estátua foi um presente do presidente boliviano Evo Morales, dado em 2013 à sua então par argentina, Cristina Kirchner. Ela se mostrava insatisfeita em ter no seu quintal a estátua de Cristóvão Colombo, em suas palavras um símbolo do imperialismo. Cristina, então, mandou removê-lo e colocou Azurduy em seu lugar.

A oposição protestou. Afinal, havia mais de 90 anos que o descobridor das Américas estava ali, e a estátua tinha sido um presente da numerosa comunidade italiana à cidade. Mas não teve jeito, o monumento foi substituído.

O atual presidente argentino, Mauricio Macri, que assumiu em 2015 em meio a essa disputa, decidiu resolvê-la de modo simples: nada de estátuas.

No último dia 16, Azurduy foi também removida da praça, causando revolta entre kirchneristas e entre os transeuntes que viram as vias do centro serem interrompidas por horas. Para tirar a obra de 21 toneladas, foram necessárias duas imensas gruas e mais de 20 funcionários.

Agora, ela está na frente do Centro Cultural Kirchner, espaço público dedicado às artes cujo nome também tem sido alvo de protestos por parte dos apoiadores de Macri.

MONTEVIDÉU E PAUL AUSTER

A Feira do Livro de Buenos Aires, maior evento literário local, anunciou sua programação para a próxima edição, em abril. Terá como principal convidado o norte-americano Paul Auster, e, como cidade homenageada, a vizinha Montevidéu.

Além de uma programação com escritores do outro lado do rio da Prata, haverá um espaço para homenagear a obra de Mario Levrero (1940-2004), recentemente resgatada e festejada na Argentina.

O IRÃ EM FORTE APACHE

E a Bienalsur, que ocorre simultaneamente em mais de 30 cidades pelo mundo, mas que tem Buenos Aires como centro, trouxe o fotógrafo iraniano Reza Deghati para trabalhar com crianças de bairros humildes da cidade.

O profissional deu oficinas de fotografia para crianças da favela 21-24, do bairro de Barracas, e da de Fuerte Apache, conhecida por ter sido o local onde nasceu e cresceu o ídolo do futebol Carlos Tevez.

As imagens feitas pelos jovens fotógrafos sob a batuta do mestre iraniano estão expostas na praça San Martín, no centro da cidade.

SYLVIA COLOMBO, 45, é correspondente da Folha em Buenos Aires.


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