Folha de S. Paulo


Equipe 'CSI' revela detalhes ocultos em telas de Oiticica e Geraldo de Barros

John Kiffe/Getty Research Institute
Pia Gottschaller, pesquisadora do Instituto Getty, analisa 'Seccionado nº 1', de Hermelindo Fiaminghi

RESUMO Projeto patrocinado pela Fundação Getty permitiu análise técnica detalhada de cem obras de arte concreta produzidas no Brasil e na Argentina a partir dos anos 1940. Trabalhos de Hélio Oiticica e Geraldo de Barros estão na lista dos que foram esquadrinhados em busca de pigmentos e camadas de tinta não aparentes.

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A alemã Pia Gottschaller se lembra da primeira vez que viu "Função Diagonal", obra geométrica em preto e branco de Geraldo de Barros (1923-98), um dos pioneiros da arte concreta e da fotografia abstrata brasileira. A pintura de 1952 integrava uma exposição realizada em 2013 no museu Reina Sofía, em Madri.

"A clareza da composição era imensa, e a execução, muito precisa. Havia poucas indicações de que tivesse sido feita a mão", descreve a historiadora de arte, que trabalha como pesquisadora sênior do Instituto de Conservação Getty, em Los Angeles. "Quando se olha de perto, no entanto, percebe-se que não foi executada por uma máquina. O fato de tudo ter sido criado pelo próprio artista gera uma aura."

Mais recentemente, ela voltou a se deparar com "Função Diagonal". Dessa vez, foi além da contemplação a olho nu, aplicando sobre o trabalho técnicas que levaram a descobertas curiosas sobre o processo do artista paulista.

A análise faz parte do primeiro estudo técnico aprofundado da arte concreta produzida no Brasil e na Argentina nos anos 1940 e 1950. O projeto envolve também a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e a Universidade Nacional de San Martín, em Buenos Aires, que dividiram um fundo de US$ 485 mil (cerca de R$ 1,5 milhão) da Fundação Getty.

Cerca de cem trabalhos foram examinados, 37 deles no Laboratório de Ciência da Conservação da UFMG. Entre as revelações estão as camadas de tinta escondidas em obras de Hélio Oiticica (1937-80), o uso de pigmentos misteriosos em quadros de Aluísio Carvão (1920-2001) e técnicas de polimento e fita adesiva em pinturas de Hermelindo Fiaminghi (1920-2004).

Na ala argentina, há peças assinadas por Alfredo Hlito (1923-93), Juan Melé (1923-2012) e Tomás Maldonado, que iniciaram o movimento concreto dez anos antes de seus pares brasileiros.

No Brasil, os artistas se notabilizaram pela experimentação com materiais, prática pouco vista no país vizinho, onde a preferência recaía sobre tintas tradicionais. A grande inovação dos "hermanos" foi o que viria a se chamar de marco recortado: obras com formatos insólitos, irregulares, que passavam longe das molduras retangulares ou quadradas.

VANGUARDA

"Muitos [artistas argentinos] eram treinados em belas artes e talvez não se sentissem obrigados a experimentar com materiais inéditos para ser de vanguarda", explica Gottschaller. "Já no Brasil, a preferência por tintas sintéticas tinha razões ideológicas relacionadas à industrialização, mas os artistas também gostavam delas porque, em comparação com as tintas a óleo, eram menos caras, secavam mais rápido e permitiam a criação de superfícies mais lisas."

A arte concreta surgiu com os movimentos de vanguarda na Europa, no começo do século 20, como uma nova forma de linguagem universal, abstrata e ao alcance de todos, longe dos preciosismos e elitismos das obras do século anterior. No Brasil, consolidou-se nos anos 1950 pelas mãos do Grupo Ruptura (SP) e do Grupo Frente (RJ).

No estúdio de conservação do Getty, entre obras renascentistas recém-adquiridas e outras modernas em restauração, Gottschaller abre uma grade do acervo e revela "Função Diagonal". "A emoção é como a de conhecer alguém famoso pessoalmente, não?", brinca.

Os 47 trabalhos concretistas analisados ali vieram da Coleção Patricia Phelps de Cisneros e são exibidos ao público até 11 de fevereiro de 2018 na mostra "Making Art Concrete", no Getty Center.

Com o nariz quase tocando o quadro, Gottschaller aponta com a unha do dedo mindinho para uma área de "Função" em que a tinta preta vaza de modo quase imperceptível para o campo branco a seu lado, rompendo o limite da fita adesiva usada no processo.

Enquanto o branco foi pintado com pincel, o preto veio de um spray. "É uma diferença delicada e linda. A olho nu é difícil de ver, mas no microscópio é possível reparar nas minúsculas gotas de tinta preta em algumas áreas. E há uma estrutura de estrias bem finas no branco, indicativa de pincel", afirma a pesquisadora.

O grande enigma era descobrir o tipo de tinta aplicado. Microamostras de preto e branco, retiradas de locais em que já havia perda de pigmento, foram enviadas ao laboratório do instituto de conservação.

Detectou-se uma base alquídica (resultante da mistura de óleo vegetal, álcool e ácido), comum em tintas de parede, mas modificada com poliuretano, uma resina sintética presente em pinturas automotivas. Essa mistura era inédita à época da criação do quadro –não se vendia em lojas.

Para encontrar a peça faltante do quebra-cabeça, Gottschaller foi atrás de uma das filhas de Geraldo de Barros, a artista Fabiana de Barros, que cuida do acervo do pai em Genebra (Suíça).

"Foi uma surpresa. Ficamos muito emocionados e felizes com esses testes todos. Começamos a ajudar", diz Fabiana, lembrando que o pai costumava frequentar, na companhia de Fiaminghi e Waldemar Cordeiro (1925-73), colegas de Grupo Ruptura, a casa de Kazmer Féjer (1923-89), húngaro conhecido pelas esculturas concretas que também era químico industrial e que morou no Brasil por quase 20 anos.

Na garagem e em outros cômodos da casa, Féjer experimentava com materiais e chegou a inventar um pigmento para tingir plástico, mais tarde usado na pintura das bochechas das bonecas da Estrela (antes feitas de porcelana por causa da facilidade de tingimento).

"Geraldo se interessava muito [pelo trabalho do húngaro], e sei que usou coisas que o Féjer estava inventando", conta a filha. Eis uma possível explicação para as cores de "Função Diagonal".

VALORIZAÇÃO

Ela se lembra de, na infância, ter visto a obra pendurada na sala de casa. O trabalho integra uma série concreta com exemplares avaliados em US$ 800 mil (R$ 2,5 milhões), de acordo com a galerista Luciana Brito.

"Pouca coisa ele guardou até o final. Dava tudo de presente aos amigos. Mas pela série concreta ele tinha muito xodó. Nos anos 1990, antes de vender [sua produção] para a Coleção Cisneros, ele escondia esses quadros debaixo da cama ou no armário", recorda Barros.

Para Gottschaller, estudos complexos como o de que ela participa ajudam a valorizar os artistas e provam que não estavam meramente imitando modernistas europeus.

"Isso cria uma grande apreciação pela mente experimentalista de Geraldo", diz ela. "Os brasileiros queriam muito que seus trabalhos constituíssem um novo tipo de objeto, algo que pudesse ter impacto na sociedade."

A repercussão de empreitadas como a do Getty e das universidades sul-americanas contribui para consolidar no Brasil uma linha de pensamento técnico de história da arte que vai além das análises formal e estilística, agregando métodos físicos e químicos de pesquisa.

Segundo Alessandra Rosado, historiadora e coordenadora-adjunta do projeto no Laboratório de Ciência da Conservação da UFMG, a identificação de tintas e técnicas é importante para expor quadros falsos e para incrementar as iniciativas de preservação e restauração, evitando que obras modernistas sejam tratadas como óleos antigos.

Nos últimos dois anos, uma equipe interdisciplinar de 12 profissionais se debruçou sobre os acervos do Museu de Arte da Pampulha (Belo Horizonte), da Pinacoteca do Estado de São Paulo, do Museu de Arte Moderna do Rio e da Coleção Tuiuiú, de Luis Antonio Almeida Braga.

A verba do Getty ajudou a cobrir bolsas de estudos, deslocamentos para as cidades e logística de transporte de equipamentos como máquinas de infravermelho, radiografia e microscopia.

DESCOBERTAS

Um dos trabalhos esquadrinhados em Minas foi a tela vermelha "Transdimensional" (1959), de Hélio Oiticica, oriunda da Coleção Tuiuiú. "A princípio, é só um quadro monocromático", diz o professor Luiz A. C. Souza, coordenador do laboratório. "Mas, quando analisei uma amostra no microscópio, tinha uma sequência incrível de camadas, de enorme riqueza. São ao menos cinco; há branco, laranja..."

Catalogada como pintura a óleo em sites de arte, "Transdimensional" foi na verdade criada com tinta alquídica. "Ela é de um período em que o Oiticica escrevia muito sobre seu interesse pela cor e comprova o aprofundamento dele [no estudo do tema]", avalia Souza.

Outra descoberta diz respeito a trabalhos de Aluísio Carvão, que sempre preferiu cores puras. No estudo de "Vermelho - Vermelho" (1959), achou-se um pigmento raro, usado na Antiguidade e na época da colonização do Brasil. Conhecido como "vermelhão", foi aposentado devido a sua composição tóxica (sulfeto de mercúrio) e substituído por composições mais modernas, como o vermelho de cádmio.

"O vermelhão não era mais utilizado na época dele. Mas a pintura combina um lado com vermelho de cádmio e outro com vermelhão", explica o professor. "Ainda não descobrimos onde ele conseguia [o pigmento]. Talvez o procurasse em lojas antigas de materiais."

Duas teses de doutorado, uma delas dedicada ao líder do Grupo Frente, Ivan Serpa (1923-73), e possivelmente um livro devem resultar do braço mineiro do projeto. A equipe também prevê realizar em 2018 um colóquio sobre história da arte técnica em que as descobertas serão apresentadas.

"Quando críticos e historiadores da arte se inteirarem mais do tipo de trabalho que fazemos, com certeza os artistas e suas obras sentirão o impacto dessa nova forma de se estudar arte", afirma Souza.

FERNANDA EZABELLA, 36, é jornalista.


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