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Simples, 'Memorial de Aires' perturba; romance pauta Clube de Leitura Folha

Ricardo Borges/Folhapress
Silviano Santiago em seu apartamento no Rio de Janeiro
Silviano Santiago em seu apartamento no Rio de Janeiro

"Machado" (Companhia das Letras), o livro mais recente de Silviano Santiago, um dos maiores críticos literários em atividade no país, é um misto de romance, ensaio e biografia. Trata dos últimos anos de vida de Machado de Assis (1839-1908).

Em entrevista à Folha, o intelectual fala sobre o Bruxo do Cosme Velho e sobre sua relação de leitor e escritor com o autor de "Memórias Póstumas de Brás Cubas".

Machado - Romance
Silviano Santiago
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Na terça (26), o segundo encontro do Clube de Leitura Folha será dedicado ao último romance escrito pelo carioca, "Memorial de Aires" (1908).

O encontro será na Livraria Saraiva do shopping Pátio Paulista, das 19h às 20h30. Angela Alonso, socióloga e presidente do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento), é a convidada do clube. Ela é autora de "Flores, Votos e Balas" (Companhia das Letras), vencedor do Prêmio Jabuti de ciências humanas.

Leia abaixo a entrevista com Silviano Santiago.

*

Folha - O que há de mais fascinante em Machado de Assis?

Silviano Santiago - Para ser bastante sincero, só me fascina a literatura que me propõe obstáculos de leitura. Eu tenho muita dificuldade em ler um livro que se me dá facilmente. Em palavras mais claras, eu tenho muita dificuldade de ler isso a que chamam livro best-seller. É uma escrita que me daria apenas aquilo que eu já sei. Eu gosto de ler algo que pode trazer alguma contribuição para a minha maneira de agir, para a minha maneira de pensar, para a minha maneira de ler. Nesse sentido, eu acho que há poucas obras na literatura brasileira que realmente me fascinam.

Há muitos livros que me fascinam. Mas há poucas obras –por obras entendo obras completas– que me fascinam. E a de Machado de Assis é uma delas. E desde o início, quando eu começo a lê-lo, na juventude.

Eu sou um leitor tardio, tenho que dizer isso. Eu vi muito cinema, fui até crítico de cinema em jornal –muito cedo, mas fui, e antes de me tornar um leitor contumaz de literatura. Machado de Assis eu devo ter lido só por volta dos 16, 17 anos. Dos autores brasileiros que eu tinha lido até então eu tinha dois de preferência, que eram Carlos Drummond de Andrade e João Cabral de Melo Neto (se vê que eu estava mais inclinado para a poesia que, a priori, é um texto que oferece mais obstáculos do que a prosa). E, de repente, eu comecei a ler a prosa de Machado de Assis e fiquei totalmente fascinado. E não parei de ler.

Continuei a ler, e depois eu me formei em letras, e passei também a ensiná-lo. E não há dúvida nenhuma de que a experiência de ensinar Machado de Assis para pessoas que naturalmente têm dificuldades de compreendê-lo acabou ajudando a mim, porque eu passei a prestar atenção em detalhes que muitas vezes passam despercebidos se a gente está interessado em apreender todo um livro, todo um romance, todo um conto, todo um poema etc. Então o fascínio dobrou.

Aquilo que parecia que se tornaria uma rotina na minha vida –ensinar Machado de Assis– passou a tomar conta do meu tempo. Eu passei a escrever sobre Machado de Assis. Tardiamente, porque meus primeiros ensaios sobre Machado de Assis são de quando eu já era professor; eu não era professor, por exemplo, quando escrevi sobre Valéry, Drummond e tantos outros. Mas Machado de Assis, eu só fui escrever sobre ele quando era professor. Daí o fascínio.

O Machado de Assis é um daqueles autores que os jovens são obrigados a ler nas escolas –por ser muitas vezes cobrado nos vestibulares–, mas do qual os leitores se afastam depois dessa fase. Como se aproximar de Machado?

Eu acho que a educação oferece grandes qualidades e vários defeitos. A leitura não deveria ser obrigatória. Ela deveria ser uma demanda natural de todo adolescente que queira virar um bom cidadão. Você não vira um bom cidadão por mágica, você vira um bom cidadão porque você tem uma boa formação. Se você quiser ser um cidadão pleno, que se interessa também pelo mundo, pelo país em que mora, pela cidade em que vive, você teria de se interessar também por isso a que se chama ciências sociais –e, dentro das ciências sociais, um capítulo importante é o conhecimento das obras literárias. Por isso, eu diria que é uma demanda natural de todo adolescente que queira ser um bom cidadão.

Agora, se essa demanda não existe, aí surge o que é trágico: a obrigatoriedade da leitura. Você é obrigado a ler um livro sobre a Segunda Guerra, um livro sobre os romanos e os gregos, e você é obrigado a ler Machado de Assis. Isso é trágico!

Por um lado, é trágico, mas, por outro lado, eu acho que a gente também tem de se dar conta de que num país que, como nós sabemos, tem um vasto passado de analfabetismo, a leitura é muito complicada, o processo de leitura é muito complicado.

Mais complicado ainda se você pede a esse leitor não para ler Paulo Coelho, que seria relativamente fácil, mas para ler Machado de Assis ou a poesia de Carlos Drummond, ou ainda José de Alencar. Em suma, a isso que chamamos clássicos da literatura. Nós nos deparamos aí com um problema delicado, e eu acho que esse problema tem de ser resolvido em comum acordo entre professor e aluno.

O professor tem como tarefa tornar essa leitura menos dura, menos artificial. Acho que a palavra é essa: menos artificial. O professor, com recursos didáticos, tem de ser capaz de mostrar para o aluno que a leitura daquele livro está enriquecendo a vida sentimental dele, que ele se tornará um outro depois da leitura. A obrigatoriedade é inevitável, mas o exercício da didática da leitura também se torna uma obrigatoriedade para o bom professor.

Segundo o senhor, "Memorial de Aires" é o livro menos lido de Machado.

Dos grandes livros de Machado, é o menos lido.

Por quê?

Eu acho que é uma coincidência infeliz, porque os livros anteriores de Machado são tão importantes que a pessoa –também o crítico, o pesquisador, o historiador que está interessado em Machado de Assis– se dá conta de que pode parar em "Memórias Póstumas de Brás Cubas", que é o primeiro dos cinco, porque já é um livro tão rico, tão denso, e ao mesmo tempo tão entusiasmante, que você acredita que pode parar por aí, não precisa ir adiante.

E aí você vai adiante e encontra "Quincas Borba", uma maravilha, e encontra "Dom Casmurro", outra maravilha, e "Esaú e Jacó", outra maravilha. Aí ficou esse livrinho final, "Memorial de Aires", que foi esquecido, mas no entanto é uma obra que merece leitura. Porque, de certa maneira, ele trata de temas importantíssimos em Machado, como por exemplo: não é gratuito que a ação do romance se passe em 1888 e 1889. Esses foram dois grandes anos do final do século 19 brasileiro, com a abolição da escravatura e a proclamação da República, assuntos já tratados por Machado de Assis em livros anteriormente.

O livro é aquilo que os franceses chamam de "romance de soma", aquele em que o escritor faz como que um retrospecto da sua obra, tentando entregar algo que seria menos fragmentado, mais coerente, mais amplo e que abrangeria determinadas questões que eram predominantes em sua obra. Isso do ponto de vista histórico. Do ponto de vista da vida amorosa, é um romance interessantíssimo, porque ele se abre com um dos personagens mais fascinantes de Machado de Assis desde seu primeiro romance, que é "Ressurreição", de 1872: a viúva.

A viúva é a figura feminina por excelência da obra de Machado de Assis. Logo na entrada está uma viúva que regressa ao Brasil depois de ter perdido o marido em Lisboa –o marido está enterrado lá. Aparece essa viúva, e Machado, com aquela graças que lhe é peculiar, dá um nome maravilhoso a ela. Ela se chama Fidélia. E lá está Fidélia à procura de um novo marido. É uma das personagens mais fascinantes, para mim, é claro –estou falando como leitor. Essa questão da fidelidade feminina está em Machados de Assis, porque a mulher, se por acaso ela se casa e perde o marido, e se torna viúva, ela, para amar outro homem, precisa ser infiel ao defunto.

E de repente você pode retomar todos os grandes temas de Machado, e agora num estilo muito despretensioso, porque no fundo é um diário. São dois anos da vida do Conselheiro Aires, um diário íntimo, e tanto essas questões amplas de caráter social e político quanto as questões de caráter pessoal, vida amorosa, estão lá tratadas de uma maneira sutil, deliciosa, com contrastes muito grandes, como a viúva, contrastada com o casal Aguiar, d. Carmo e seu Aguiar. Tudo isso é muito engraçado, muito divertido.

Talvez eu agora esteja mais próximo de uma resposta coerente sobre o porquê de o romance ter acabado esquecido: porque retoma os grandes temas já conhecidos num estilo menos faustoso, por assim dizer, menos original, do que em livros como "Memórias Póstumas". Então talvez a simplicidade seja desnorteadora, e "Memorial de Aires" talvez desnorteie as pessoas, os aficionados de Machado de Assis, por não ser tão complicado quanto os outros.

Por que Machado segue atual? E mais, por que ele até hoje parece despertar no leitor uma sensação de proximidade?

Isso não é verdade para todas as obras clássicas? Nenhuma obra de arte –seja literatura, artes plásticas, cinema– se torna clássica gratuitamente. Ela se torna clássica porque, para usar uma expressão de Ezra Pound de que gosto muito, é bem carregada de significado, excessivamente carregada de significado.

Há uma metáfora muito boa pra esse excesso de significado da grande obra que é a da tomada de eletricidade. Essa carga elétrica excessiva é fascinante. É isso que toma a gente, e que toma tanto mais se a obra não for tão simples. Porque, se ela não for tão simples, é que houve um carregamento excessivo. Ela pode, de início, dar um curto-circuito.

Muitas vezes, as pessoas têm um curto-circuito. Leem Machado obrigadas e dá aquele curto-circuito. Depois, se você vem mais desarmado, percebe que a energia está ali, a eletricidade está ali, e aquilo vem e te ilumina. Isso é parte da complexidade da grande obra de arte. Ela não se entrega facilmente à primeira vista, ela requer que você a visite de quando em quando.

O ideal seria isso: que de tempos em tempos, a cada ano, você relesse Machado de Assis, ou aquele autor que realmente te interessa, que desde o início vinha apresentando dificuldades e perplexidades.

Essa combinação é interessante: a dificuldade, que você começa a tentar domar, e a súbita perplexidade. Como é que você não reparou nisso? Isso é tão legal, e você passou rápido, desprevenido.

Machado de Assis é nosso contemporâneo, assim como, sei lá, eu poderia citar qualquer um dos clássicos gregos ou latinos ou ainda renascentistas. Camões é nosso contemporâneo. É esse o fenômeno da genialidade. No fundo, é disso que a gente está falando, da genialidade de determinados artistas, que conseguem imprimir tal energia à obra que produzem que essa energia não se esgota no próprio século, não se esgota depois de muitos séculos e permanece viva.

Como é sua relação de escritor e leitor com o autor que está pesquisando, com a obra na qual está mergulhado?

Isso é uma característica muito particular de alguns livros meus –não de todos– que tratam de uma figura que eu acho que faz falta na literatura brasileira, que são os grandes intelectuais. A ficção brasileira, acho que não estou dizendo nenhuma mentira, tende a ser populista. São personagens mais rudes, do mundo urbano ou do mundo rural, e são poucos os romances brasileiros que tratam de intelectuais.

Eu resolvi que, em alguns dos meus romances, trataria de intelectuais. O primeiro deles foi Graciliano Ramos; o segundo foi Antonin Artaud; e um terceiro está sendo Machado de Assis. Na medida em que sou leitor e admirador desses três autores, o meu relacionamento com eles enquanto figura física e enquanto figura artística (ou seja, com a obra deles) é um relacionamento que eu chamo, sem nenhuma vergonha, de amoroso. É muito profundo, uma espécie de... há uma certa ironia, mas muito de verdade no que eu vou dizer, são aqueles autores que são de autoajuda para mim.

Paulo Coelho não é autoajuda, Machado sim. Eles me ajudam muito a viver, a me situar no mundo, a conhecer melhor as pessoas, a família, as pessoas pelas quais eventualmente eu tenha também um sentimento amoroso, e assim por diante.

Eu acho que eu me torno melhor quando estou lendo esses autores. Tenho até um pouco de inveja de mim quando eu consigo escrever sobre eles. "Pôxa, está ficando uma coisa legal." E acho que estou conseguindo uma coisa legal quando escrevo sobre eles.

Se reparar, são os meus livros possivelmente mais difíceis e, no entanto, são aqueles que têm recebido mais atenção da crítica. Existe talvez algo neles que seja uma novidade em termos de literatura brasileira e tem gente que sente isso que eu sinto e que talvez não tenha tido a sorte de também escrever. É uma sorte poder escrever. Por isso, eu me torno responsável também, são meus livros mais responsáveis.

Costumo ser bastante irresponsável, eu tenho livros bem irresponsáveis, como "Stella Manhattan", "O Falso Mentiroso". E esses três são muito responsáveis, porque são figuras artísticas que não dá para serem tratadas de maneira leviana, e isso é bom porque não só eles são de autoajuda no plano pessoal como também possibilitam que eu deixe algumas construções aí pelo meio do caminho. São algumas pedras que deixei pelo caminho. Se são boas ou não são boas, aí é um outro problema. Mas, pelo menos, eu deixei algumas pedras aí.

De tempos em tempos, eu deixo uma pedra que é uma construção simbólica do que eu sou, mas do que eu sou de uma maneira que eu acredito ser muito generosa, porque é o que eu sou pelo outro, sou eu enriquecido da experiência de outra pessoa que merece a minha admiração, e até mesmo o meu amor.


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