Folha de S. Paulo


A história da primeira mulher barrada pela Academia Brasileira de Letras

"Arquivar a própria vida é escrever o livro da própria vida que sobreviverá ao tempo e à morte."

Começo o texto com essa frase de Philippe Artières, não só porque, nela, o historiador considera o arquivo um registro capaz de transcender nossa própria existência, mas por eu ter tido a oportunidade, em minhas andanças como pesquisadora, de folhear um desses preciosos livros: o arquivo pessoal de Júlia Lopes de Almeida (1862-1934).

Chegar até a escritora carioca e, em seguida, até seus manuscritos foi fruto de um feliz acaso que suscitou mudanças repentinas de rota, novas descobertas e me brindou com amizades inspiradoras, como a que construí com Claudio Lopes de Almeida, seu neto. Nascido em 1930, ele cuidou do arquivo de Júlia com grande zelo até 2010, quando decidiu doá-lo à Academia Brasileira de Letras.

Acervo Júlia Lopes de Almeida
Manuscrito de Júlia Lopes de Almeida
Manuscrito de Júlia Lopes de Almeida

Para além dos laços consanguíneos e de afeto, Claudio, como herdeiro simbólico de Júlia, é também seu leitor atento e interessado na divulgação desse patrimônio literário. Não me esqueço da primeira vez que o visitei em Santa Teresa, do encantamento provocado pelo mergulho naquele Rio de memórias contido nos manuscritos, das lembranças que compartilhou comigo e das histórias engastadas nos objetos que pertenceram à avó, como a máquina de escrever Remington e a caneta tinteiro.

Refazer os caminhos até Santa Teresa e rememorar esse episódio é uma forma de homenagear o admirável ser humano que é Claudio.

Em meados de 2000, quando pesquisava as mulheres na ABL, costumava visitar o Rio de Janeiro com certa frequência.

Durante uma busca no arquivo da instituição, surpreendi-me com a história de Júlia: seu nome havia sido sugerido por Lúcio de Mendonça, um dos idealizadores da Academia Brasileira de Letras, para integrar o quadro de fundadores. A única mulher. A indicação, porém, não se confirmou.

Eu, que então mirava a ABL pós-1976, quando as candidaturas deixaram de ser uma prerrogativa masculina, passei também a me dedicar aos seus primeiros 80 anos de existência, marcados pela presença feminina como parte do inenarrável.

Júlia foi o primeiro vazio institucional da academia produzido pela barreira do gênero. Intrigada com essa presença latente, passei a buscar sua produção literária e fatura crítica.

Acervo Pessoal
Michele Asmar Fanini com Claudio Lopes de Almeida
Michele Asmar Fanini com Claudio Lopes de Almeida

Por intermédio da professora Nadilza Moreira, estudiosa da obra de Júlia, contatei Claudio, que prontamente aceitou me receber.

A visita ocorreu em agosto de 2007, a metros do casarão em que a escritora residiu com a família de 1904 a 1925. De fora, avistei o salão verde, onde Júlia e Filinto de Almeida realizavam saraus literários. Já na residência de Claudio, deparei-me com um conjunto de textos teatrais inéditos. Tal documentação indicava quão densa era a manta de desconhecimento depositada sobre a produção autoral feminina do período.

O dia se encerrou de forma doce: com bolo caseiro e um refrescante suco de uva. Claudio está sempre disposto a bem receber os que se interessam por Júlia, o que tem sido imprescindível para que sua obra adquira cada vez mais visibilidade. E tal empenho parece ecoar um desejo da avó, que fez coincidir sua trajetória literária com a produção de seu arquivo.

O arquivo de Júlia é um desses "livros da própria vida" que subsistem ao tempo.

Alguns anos depois, aqueles textos inéditos se transformariam em fonte de uma nova pesquisa, realizada no Instituto de Estudos Brasileiros. Seu fruto é o livro "A (In)visibilidade de um Legado", que chega num momento duplamente simbólico: em meio às comemorações dos 120 anos da ABL e quando a própria instituição realiza uma homenagem a Júlia, como parte do ciclo de conferências batizado de "Cadeira 41", organizado por Ana Maria Machado.

O livro é dedicado a Claudio. Obrigada, meu estimado amigo, por sua infatigável dedicação à memória de Júlia e por possibilitar que tão precioso legado seja (re)conhecido!

MICHELE ASMAR FANINI, 40, doutora em sociologia pela USP, lança "A (In)Visibilidade de um Legado: Seleta de Textos Dramatúrgicos Inéditos de Júlia Lopes De Almeida" (Intermeios/Fapesp), fruto de estágio pós-doutoral no Instituto de Estudos Brasileiros da USP.


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