Folha de S. Paulo


Festival de cinema de Brasília começa nesta semana, politizado como sempre

"A criação de gado e o rude trato da terra emprestaram a esses vales uma feição cultural marcante e idêntica à que, em geral, se observa em todo sertão nordestino. Mas, desgraçadamente, também nessas paragens uma minoria detém a posse da terra e dos bens que o esforço do homem retira dela. O resultado é a injustiça e a humilhação. Por isso, qualquer semelhança com a história de outros sertões não é mera coincidência, mas semelhança mesmo."

Com esse letreiro começava o documentário "No País de São Saruê", que ficou de 1971 a 1979 proibido pela ditadura militar (1964-85) e marcou a história do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro.

De 15 a 24 de setembro, o evento cultural mais renomado do Distrito Federal fará sua 50ª edição com homenagem ao cineasta Nelson Pereira dos Santos, de "Vidas Secas".

Sergio Lima - 26.set.2011/Folhapress
O diretor Vladimir Carvalho (à frente) na abertura do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro de 2011
O diretor Vladimir Carvalho (à frente) na abertura do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro de 2011

Em 1965, ele participou da fundação do festival ao lado de Paulo Emilio Sales Gomes (1916-77), Pompeu de Sousa (1914-91), Jean-Claude Bernardet e outros professores de cinema na UnB (Universidade de Brasília). Naquele mesmo ano, todos pediram demissão da universidade, assim como dezenas de outros em vários cursos, em repúdio à saída de um grupo de colegas perseguidos pelo governo.

A edição do festival de 2017 seria a 53ª, não fosse um interregno forçado. "São Saruê" havia sido escolhido para a mostra competitiva de 1971, mas acabou vetado pela ditadura. A proibição provocou protestos de artistas e espectadores. Acuada, a instituição organizadora, a fundação cultural do governo do DF controlada pelo regime militar, decidiu não realizar o festival de 1972 a 1974.

No furacão estava o autor do documentário, Vladimir Carvalho, que se tornaria um dos cineastas mais importantes de Brasília.

"O meu filme foi escolhido pela comissão de seleção. Mas, faltando dois dias para o festival começar, foi arrancado da seleção. Colocaram outro filme, 'Brasil Bom de Bola', para agradar o [general Emílio Garrastazu] Médici, e eu fiquei chupando o dedo. Em seguida, a comissão de seleção se demitiu em protesto."

No dia da exibição do filme que substituiu o documentário, houve um bafafá, como se dizia na época, com vaia às autoridades e bolinhas de gude jogadas no salão de espera para os policiais escorregarem.

DEDO-DURO

Outro episódio marcante ocorreu na edição de 1978, quando Glauber Rocha (1939-81) protestou, no escuro de uma sessão no Cine Brasília, contra um dos organizadores do festival, chamando-o de dedo-duro. Havia feito o mesmo na piscina do Hotel Nacional, onde estavam cineastas convidados para o festival.

Episódios como esses são citados pelos brasilienses na comparação com o Festival de Gramado, primo mais jovem (44 anos) e supostamente menos engajado, que atrai estrelas da TV Globo e sucessos de bilheteria.

RECORDE

O festival de Brasília chega aos 50 anos batendo recorde de inscrições, com 778 candidatos (entre curtas e longas-metragens), contra 605 da edição anterior. Mas e a crise? Francisco Almeida, presidente do instituto contratado para organizar o evento, lembra que os projetos no cinema têm um tempo mais longo de maturação. Em tese, a edição de 2017 colhe o que começou a ser plantado antes de 2014.

Dos longas inscritos, nove vão concorrer ao troféu Candango, incluindo a primeira direção solo de Daniela Thomas. O festival será aberto com "Não Devore meu Coração", de Felipe Bragança, já exibido nos festivais de Sundance e Berlim. O filme é baseado em contos de Joca Reiners Terron.

MEMÓRIAS

Centro político do país, Brasília guarda lembranças profundas da ditadura militar. O tema é frequente na atual produção literária de não ficção na cidade. Duas obras lançadas na capital federal apresentam o regime militar a partir do olhar de personagens que viveram a época com intensidade, sofrimentos, pressões e dúvidas.

Em Nome dos Pais
Matheus Leitão
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O livro do jornalista Matheus Leitão, "Em Nome dos Pais" [Intrínseca, 438 págs., R$ 49,90], deverá virar uma minissérie em quatro capítulos na HBO latina. Narra a sua procura obstinada por pessoas que, no começo dos anos 1970, delataram e torturaram seus pais, os jornalistas Miriam Leitão e Marcelo Netto.

"A Morte do Diplomata" [Tema Editoral, 205 págs., R$35], de Eumano Silva, conta a história pouco conhecida, mas instigante, de Paulo Dionísio de Vasconcelos, segundo-secretário da embaixada do Brasil em Haia, encontrado morto no verão de 1970, dentro de seu carro, com cortes nos pulsos.

Eumano, que em 2006 recebeu um Prêmio Jabuti de livro-reportagem, também trata de um passado que insiste em bater à porta do presente em busca de respostas que nem sempre aparecem.

RUBENS VALENTE, 47, é repórter da Folha em Brasília e autor de "Os Fuzis e as Flechas: História de Sangue e Resistência Indígena na Ditadura" (Companhia das Letras).


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