Folha de S. Paulo


Leia trecho de romance inédito do ator e dramaturgo premiado Sam Shepard

SOBRE O TEXTO O trecho abaixo abre "Este Aqui de Dentro", romance publicado nos EUA pouco antes da morte do autor, que a Estação Liberdade lança por aqui no fim deste mês. Atravessam a ficção temas recorrentes nas peças e contos do americano (que coassinou o roteiro de "Paris, Texas", de Wim Wenders), como confusões de identidade e conflitos familiares.

Carcarah
SÃO PAULO, SP, BRASIL, 31-08-2017: Pintura de Deborah Paiva (Foto: Giovanni Bello/Folhapress, COTIDIANO) ***EXCLUSIVO FOLHA**** ORG XMIT: 30894

Mataram alguma coisa lá longe. Estão disputando. É. Se esganiçando. Soltando aqueles guinchos loucos deles enquanto rasgam a maciez. Está acordado -5h05 da manhã. Um breu. Coiotes na distância. Deve ser. Está acordado, em todo caso. Olhando as vigas. Adaptando-se ao "lugar". Acordado, mesmo depois de um alprazolam inteiro, prevendo demoniozinhos -cavalos com cabeça de gente. Todos pequenos, como se em tamanho natural fossem grandes demais para abarcar. Os cachorros estão de prontidão, uivando na cozinha feito feras. Frio medonho, de novo. Neve azul mordiscando a beirada das janelas: cintilando ao que sobrou da lua cheia. Atira os cobertores de lado num floreio de toureiro e lança os joelhos ossudos para fora da cama, no ar cortante. Quase na mesma hora se senta reto, mãos apoiadas nas coxas. Tenta perceber a paisagem sempre mutante do corpo -onde ele reside? Em que parte? Espia as meias azuis bem grossas, surripiadas de algum set de filmagem. Parte de algum figurino -de algum personagem, esquecido faz tempo. Vêm e vão, esses personagens, como amores curtos e intensos: trailers -caminhões de lixo- burritos pela manhã -barracas de alimentação no estúdio- falsas limusines -toalhas quentes- ligações às quatro da manhã. Quarenta e poucos anos disso. Demais. Difícil de acreditar. Vasto demais. Como cheguei aqui? O trailer de alumínio balança e sacode na ventania uivante. É um rosto jovem que lhe devolve o olhar num espelho vagabundo de 10 x 10, rodeado de lâmpadas nuas. Lá fora, estão filmando gafanhotos que caem em grandes cones rodopiantes lá do alto de um helicóptero alugado. Estão mesmo. No plano de fundo -o trigo de inverno, do tamanho de um polegar, forma ondas esvoaçantes.

Agora, sentado na ponta do colchão firme, fitando as meias grossas azuis, o vapor branco da respiração se desfazendo no escuro da manhã, ele sabe que tudo virou verdade. Fica um bom tempo sentado ali -reto. Uma garça-azul-grande esperando uma rã aflorar.

A casa não range; é de concreto. Lá fora gemem os álamos. Agora não sente frio. Passa-lhe pela cabeça que faz mais de dois anos que rompeu de repente com a última esposa. Uma mulher com quem ficou quase 30 anos junto. Passa-lhe pela cabeça. Imagens. A fonte? "Estou agora choramingando?", pergunta-se com voz de menino pequeno. De um menino ele se lembra, mas não é ele. Não este aqui, agora, tremendo nas grossas meias azuis.

Seis da manhã: O vento agora parou, depois de três dias seguidos soprando furioso do lado sul. Ar parado, muito mais quente. Casa ainda bem quente. Pensamento -hoje tenho exatamente um ano a mais do que o meu pai, quando morreu. Pensamento esquisito, como se fosse uma espécie de conquista em vez de pura sorte. Ou de obra do acaso. Tirando combinações de seda negra. Femininas. Estalos azul-elétrico de estática. Vejo o meu peito soltando faíscas. Tenho eletricidade em mim. Tome os vários comprimidos receitados pelo acupunturista. Enfileire todos eles. Cores. Formatos. Tamanhos. Não queira saber para o que servem. Apenas faça como lhe disseram. Alguém deve saber. Faça como lhe disseram. O primeiro raio de luz atravessa os pinheiros. Cachorros dormindo fundo no chão da cozinha, as patas de atravessado como se estivessem imobilizados num galope. Faço café num bule velho manchado. Jogo fora a borra de ontem. Camundongos roçando na grade de aquecimento, procurando calor. Pensando na razão de Nabokov para escrever -"êxtase estético"-, só isso -,"êxtase estético". Certo. Seja lá o que for.

SAM SHEPARD (1943-2017) foi um dramaturgo, cineasta e ator americano.

DENISE BOTTMANN, 63, é tradutora.

CARCARAH, 38, é ator e ilustrador.


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