Folha de S. Paulo


Ativistas usam bandeiras para cobrar museus sobre ausência de negros

Rio de Janeiro, 2015

Ao invés de falar de memórias com personalidades, como é praxe neste espaço, recorro a anônimos e a encontros ocorridos a partir da intervenção da Frente 3 de Fevereiro, coletivo do qual participo há mais de 12 anos.

Em janeiro de 2015, instalamos uma bandeira gigante na fachada do Museu de Arte do Rio, localizado na praça Mauá, no centro da capital fluminense, voltado para o chamado Porto Maravilha. A flâmula questionava em letras garrafais: "ONDE ESTÃO OS NEGROS?".

Daniel Lima
Bandeira-performance no MAR, no Rio, da Frente 3 de Fevereiro
Bandeira-performance no MAR, no Rio, da Frente 3 de Fevereiro

O trabalho foi montado originalmente em 2006 para intervenções em estádios de futebol, em uma série da qual faziam parte outros dois estandartes: "BRASIL NEGRO SALVE" e "ZUMBI SOMOS NÓS".

Abrimos a bandeira pela primeira vez no jogo Corinthians x Ponte Preta, em Campinas. A Ponte foi, no futebol paulista, um dos primeiros times a aceitar negros na linha e, por isso, sua torcida ganhou a alcunha de macaca.

Na chegada dos jogadores para o segundo tempo, a frase se desfraldava sobre a arquibancada. Os jogadores se entreolhavam, trocando silenciosamente cúmplices perguntas: "É comigo?", "Sou eu esse negro?", "Somos nós?". O que uma pergunta tão embaraçosa fazia em um ambiente de fanáticas certezas?

No mesmo ano, em Buenos Aires, pusemos a bandeira no Palais de Glace. Foi a primeira vez que ela cobriu um museu. Deitada sobre a cúpula central, a frase ressoava por toda a exposição.

Alguns dias depois da abertura, um casal portenho nos abordou: "Aquí en el palais no los hay [negros]. Pero en las calles, los negros son los cabecitas negras". Eles se referiam a toda sorte de imigrantes da América do Sul vindos dos Andes. Bolivianos, peruanos, nativos.

Então, em 2015, estávamos montando a bandeira-pergunta na fachada do Museu de Arte do Rio para a exposição "Zona de Poesia Árida", da qual eu fazia a curadoria com Túlio Tavares. O vento da entrada da baía da Guanabara impunha um desafio único. Eis que um jovem negro que trabalhava como gari se aproximou:

– Sobre o que é isso?

Dei a resposta padrão artístico-pedagógica:

– Sobre o que você acha que é?

– Negros? Acho que é sobre o museu. Sobre a história da arte e o museu.

– Isso. Mas também onde estão os negros na sociedade.

– Essa pergunta também foi feita a um filósofo francês, Jean-Paul Sartre, quando veio ao Brasil –lançou o gari.

Lembramos a passagem da crônica "Onde Estão os Negros", de 1967, em que Nelson Rodrigues narra o incômodo do filósofo existencialista em sua visita ao Brasil. Depois de frequentar somente círculos sociais brancos, Sartre teria lançado a pergunta: "E os negros? Onde estão os negros?".

No dia seguinte, entretanto, a bandeira e a sua frase começaram a se rasgar com a força do vento. Ao meio-dia, sol a pino, trabalhadores em saída para o almoço, presenciei o suspiro derradeiro da bandeira. O rasgo se abriu de vez. Ato final da performance. Durante aquele adeus, chegou ao meu lado um homem:

– Que besteira é esta? Cada coisa que a gente vê! Não tem que fazer essa pergunta, não. Que coisa é essa de negro? Onde o negro tá? Vem com essa de direitos humanos, de Amarildo...

É a pergunta que não quer calar no Brasil, o país que mais recebeu negros escravizados em todo o mundo. O trabalho é uma luta para inscrever novas perspectivas e passa pela reinvenção dos conceitos que possam nos colocar todos num mesmo lado de uma mesma resistência. Convocar o negro não como fortaleza identitária, mas como ponto de partida comum, referência a partir da qual se tem aonde ir.

É como proclamava a Constituição do Haiti de 1805, após a revolta escrava ter tomado o poder: "Todos os cidadãos, de aqui em diante, serão conhecidos pela denominação genérica de negros". E aqui no Brasil: onde estão os negros?

DANIEL LIMA, 44, artista visual, é curador da mostra "Agora Somos Todxs Negrxs?", em cartaz no Galpão VB, em São Paulo, até 16/12.


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